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Esportes de quadra e rua perdem espaço com a Geração Z, cada vez mais viciada nos eSports

Crianças já estavam se afastando das modalidades tradicionais antes da covid-19, com desdobramentos para toda a indústria esportiva. A tendência se acelerou na pandemia

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Por Joe Drape
Atualização:

Uma cesta de basquete em miniatura pendurada na porta do quarto. Os troféus de futebol americano expostos em cima da cômoda. Os dois esportes competem pelo tempo e pela atenção de David e Matthew Grimes. Mas ambos estão perdendo terreno para outra marca da adolescência: o console de videogame.

David, 13 anos, e Matthew, de 11, são atletas iniciantes de eSports. David manuseia os controles e ouve um vídeo sobre estratégia de um treinador da YMCA na noite de segunda-feira. Na quarta-feira, enfrenta os concorrentes. Matthew tem jogo da liga na quinta. Pelo menos um fim de semana por mês, eles competem em algum torneio do Super Smash Bros. Ultimate.

Campeonatos de eSports mobilizam mlhares de participantes de espectadores. Foto: Petr Josek/Reuters

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David e Matthew fazem parte de uma migração crescente entre os membros da Geração Z - como muitas vezes são chamados os nascidos de 1997 a 2012. Uma migração para longe das quadras de basquete e campos de futebol construídos para as gerações anteriores e rumo aos consoles de PlayStation e Xbox.

Não é um jogo de soma zero: muitas crianças, entre elas os irmãos Grimes, gostam tanto dos esportes virtuais quanto dos físicos. Mas está claro que para os jovens a ascensão dos eSports veio às custas dos esportes tradicionais, com implicações para seu futuro e para a forma como as crianças crescem.

Os eSports tiveram um grande impulso durante a pandemia, especialmente no nível da base. Entre as aulas remotas e o cancelamento dos esportes juvenis, uma geração que nasceu cercada de alta tecnologia encontrou ainda mais fuga e engajamento em seus smartphones e consoles.

A participação nos esportes juvenis vinha diminuindo antes mesmo da covid-19: em 2018, apenas 38% das crianças de 6 a 12 anos praticavam esportes coletivos regularmente, ante 45% em 2008, de acordo com a Sports & Fitness Industry Association.

Em junho de 2020, nos primeiros dias da pandemia, 19% dos pais com filhos em modalidades esportivas juvenis disseram que seus filhos não estavam interessados em praticar esportes, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Programa de Esportes e Sociedade do Instituto Aspen. Em setembro de 2021, esse número já estava em 28%.

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SEM DIVERSÃO

Em média, as crianças jogam determinado esporte por menos de três anos e desistem aos 11 anos de idade, de acordo com a pesquisa. Por quê? Principalmente porque deixa de ser divertido. 

As implicações são globais. Existem atualmente mais de 2,4 bilhões de gamers - cerca de um terço da população mundial, de acordo com a Statista, empresa internacional de marketing e dados de consumo com sede na Alemanha. Em todo o mundo existem equipes profissionais que competem em torneios por prêmios de até US$ 34 milhões, bem como dezenas de milhares de outras competições com prêmios em dinheiro ou disputadas em ligas escolares e recreativas, respondendo por mais de US$ 1 bilhão em receitas de eSports globalmente.

O efeito nos esportes tradicionais é apenas uma das preocupações expressas sobre esse fenômeno. A proliferação dos e-Sports evoca imagens de crianças comendo lanches açucarados tarde da noite, com os olhos vidrados na tela. A pesquisa, no entanto, não confirma totalmente essa hipótese: um estudo alemão de 2019 revelou apenas "uma ligeira correlação positiva" entre os jogos de videogame e a massa corporal dos adultos, mas não das crianças.

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Alguns treinadores de esportes juvenis parecem entender o feitiço dos videogames sobre seus jogadores. Em 2018, um treinador de lacrosse de Nova Jersey decidiu que, se não conseguia vencê-los, se juntaria a eles. Antes dos jogos ele começou a fazer preleções que demonstravam seu profundo conhecimento sobre Fortnite - e isso repercutiu nas redes sociais.

"Isto aqui é igual ao Fortnite, igual ao Battle Royale", disse ele. "Vinte e quatro equipes, ficam quatro. Sabem como é? Restam quatro equipes, temos o Chug Jugs, temos a SCAR dourada. Vamos lá! Não é diferente de uma batalha de Fortnite. Vamos ganhar esse negócio!".

O declínio do interesse por esportes não chega a surpreender quando 87% dos adolescentes nos EUA têm iPhones, de acordo com uma pesquisa com 10 mil jovens pelo banco de investimento Piper Sandler. Nem quando 26% dos jovens da Geração Z apontaram os videogames como sua atividade de entretenimento favorita, em comparação com 10% que escolheram assistir televisão.

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"Há muito mais coisas competindo pela atenção dos jovens - eSports é um grande problema", disse o Dr. Travis E. Dorsch, professor associado e diretor fundador do Laboratório de Esportes da Universidade Estadual de Utah. "À medida que as crianças ficam mais velhas, há mais cobrança acadêmica e social. Estamos vendo muitas desistências. Isso cria um desafio para os esportes juvenis".

O complexo industrial dos esportes juvenis de mais de US$ 19 bilhões, com seu treinamento particular, suas viagens interestaduais e seus tacos de beisebol de US$ 350, tem parte da culpa. Temporadas de dez meses em busca de uma bolsa de estudos podem significar crianças pressionadas por treinadores exigentes demais e pais que gastam milhares de dólares em taxas de times e despesas de viagem.

"Estamos num momento de inflexão para os esportes na América", disse Tom Cove, presidente e executivo-chefe da Sports & Fitness Industry Association, que compila um relatório anual sobre a participação nos esportes. "Enquanto as famílias estavam em casa durante a pandemia, eles não tinham de levar os filhos para treinar quatro noites por semana. E os pais e mães gostaram".

Para Tony e Dawnita Grimes, esse caminho os levou ao YMCA da região metropolitana de Dallas e a uma maior valorização dos eSports.

BOLA EM JOGO

Frisco, cidade de 200 mil habitantes a cerca de 45 quilômetros ao norte de Dallas, é a terra do futebol americano. É onde fica The Star, sede mundial do Dallas Cowboys. David Grimes veste uma camiseta dos Cowboys e pode falar com propriedade sobre o quarterback do time, Dak Prescott. Quando The Star foi inaugurado, David foi escolhido para carregar o capacete do linebacker Leighton Vander Esch antes de uma sessão de treinos de pré-temporada.

Tony Grimes é executivo de vendas da PepsiCo. Jogou futebol no ensino médio em South Los Angeles. Dawnita Grimes, que é advogada, participou de equipes de tênis e dança em Kentucky.

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Tony e Dawnita Grimes afastaram os filhos do futebol americano devido ao risco de lesões, mas incentivam que eles joguem futebol, natação, basquete e golfe. Querem que os meninos sejam bons em várias áreas, então David toca trompete e Matthew, piano. Às vezes, o acúmulo de escola, esportes e outras atividades levava a jantares rápidos ou a atrasos na lição de casa. Os Grimes estavam ocupados, mas eram hábeis em conduzir os ritmos da vida familiar.

Aí veio a pandemia. O cancelamento dos jogos deixou os meninos com tempo sobrando. "Por causa da covid, comecei a jogar videogame", disse David Grimes. O irmãozinho Matthew foi atrás.

A mãe e o pai também estavam imersos nas suas telas e, numa rendição comum a muitos outros pais e mães, já não estavam tão disciplinados quanto ao tempo que seus filhos ficavam nos dispositivos. "Ah, sim, foi a tábua de salvação", disse Dawnita Grimes. "Eles ficaram longe dos amigos. A maioria não trocou números de telefone ou não sabe os sobrenomes uns dos outros. A menos que você conhecesse seus pais, era difícil se conectar - e odeio dizer isso - a não ser por meio desses games".

Tony Grimes admite que gosta de pegar os controles e tentar dominar outro universo. Além da paz e tranquilidade que o tempo de tela proporcionou aos pais, ele passou a gostar das habilidades necessárias para ser competitivo. "Você tem que estar focado, entender a estratégia e ter uma boa coordenação olho-mão", disse ele.

Numa noite de semanas atrás, David trouxe o console de seu quarto para contar a Matthew, a seus pais e ao visitante o que ele tinha aprendido na noite anterior com um tutorial online. Os garotos pegaram seus controles suavemente, como se estivessem segurando um pássaro. "Não basta assistir aos jogos, você tem que jogar de verdade", disse David. "Então você tem de encontrar um personagem com o qual você seja bom". "Pegue o Herói ou a Nuvem", disse Matthew, enquanto seu irmão clicava nos personagens.

Os eSports permitem que as crianças se divirtam com os amigos, mesmo quando não estão juntos. Os fones de ouvido permitem que os jogadores falem - ou, mais frequentemente, gritem - uns com os outros como se estivessem sentados lado a lado. Qualquer pessoa que tenha ouvido seus filhos e filhas competindo online ouviu pelo menos um lado da conversa se desenrolando com a mesma facilidade com que o papo rola entre duas crianças jogando basquete no parquinho.

"A hierarquia que você geralmente encontra nos esportes tradicionais acabou - todo mundo está simplesmente lá", disse Dorsch, que foi um dos principais investigadores da pesquisa do Instituto Aspen. "É mais uma questão de meritocracia".

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Ele acredita que os eSports evoluíram dessa forma devido à ausência da influência dos adultos em seu estágio inicial. "Você vai a um programa de futebol ou basquete e pode identificar imediatamente as crianças de 6 anos que são atléticas e têm talento", disse Dorsch. "Seus pais veem e pensam: 'Bom, ele ou ela poderia ser muito bom com mais treinamento'".

Para as crianças, isso pode transformar a paixão numa busca - uma busca bem cara para os pais. Num estudo de 2016, Dorsch e seus colegas descobriram muitas famílias que gastam até 10,5% de sua renda bruta anual - às vezes mais de US$ 20 mil - e com treinadores, despesas de viagem e equipes para seus filhos. "Então os adultos estão na sala", disse ele. "E eles querem um retorno sobre o investimento".

Na família Grimes, o amor pelos esportes foi transmitido da maneira tradicional. Durante os jogos um-contra-um na cesta em miniatura pendurada na porta do quarto, Tony Grimes sempre foi Michael Jordan e David sempre foi LeBron James. Isso dava a Tony a oportunidade de contar aos meninos histórias sobre um herói de sua juventude e como Jordan se comparava a James, o herói deles.

Agora, essas conversas costumam ser invertidas. Tony ouve David falar sobre porque prefere Banjo e Kazooie a outros avatares do game Super Smash Bros. Em vez de percentagens de arremessos e médias de pontuação, a conversa gira em torno do botão B e de movimentos especiais que podem significar a diferença entre a vitória e a derrota.

"Então, este é meu personagem favorito, mas não sou muito bom jogando com ele", disse David, falando sobre um personagem na tela. "Existem alguns personagens com os quais você realmente quer jogar bem. Eu não jogo. Ainda".

Então, Banjo e Kazooie são mais importantes para você do que LeBron e Dak? "Acho que sim", disse David, "porque são os personagens com os quais tenho de jogar se quiser ganhar uma partida ou um torneio".

UM NOVO CAMPO DE JOGO

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Ele tem muitas chances de competir. Em abril, o YMCA of America lançou um piloto nacional de eSports em 120 de suas filiais nos Estados Unidos. Foi um sucesso imediato na região de Dallas, onde mais de 500 crianças em idade de ensino fundamental e médio participaram dos programas.

“Nós sabíamos da popularidade dos games e o fato de que os torneios podiam ser realizados remotamente nos deu uma maneira de interagir com as crianças durante a pandemia”, disse Rodney Black, diretor de programa do YMCA de Dallas. “O interesse foi imediato e continua crescendo. O plano é ter um salão de jogos no local em 2022”.

Foi exatamente o tipo de reconhecimento que persuadiu Dawnita Grimes a abrir um pouco mais o mundo online para seus meninos.

“A gente ouve histórias sobre predadores e se preocupa com o potencial viciante desses games”, disse ela. “Aqui as coisas são organizadas e supervisionadas, você não precisa se preocupar com palavrões e falta de espírito esportivo”.

David ganhou um torneio e Matthew venceu seu irmão mais velho em outro. Mesmo assim, nenhum dos dois abandonou o futebol e ambos querem jogar tênis, golfe e natação na primavera e no verão.

David, no entanto, sabe que existem profissionais que têm patrocinadores e podem ganhar milhões em torneios. Quase dá para ouvir os técnicos de futebol da liga juvenil arrancando os cabelos quando ele fala sobre isso.

“É mais seguro do que outros esportes. Você não se machuca”, disse ele. “Bom, você ainda precisa se preocupar com as mãos porque, se suas mãos ficarem ruins, é um problema, porque você precisa jogar o jogo”.

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Ele faz uma pausa e abre um sorriso./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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