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Brasil

‘Escolas precisam ser ambientes seguros’, diz pedagoga sobre assédio

Carolina Arcari defende que as instituições incluam educação sexual no currículo

RIO - Desde a última sexta-feira, um assunto tem dominado as conversas de grupos de WhatsApp de muitos estudantes cariocas: os relatos de assédio sexual em ambiente escolar sofrido por alunas da Rede de Ensino Pensi . Durante o final de semana, estudantes de outros colégios se mobilizaram para organizar a #SegundaVermelha, e, na segunda-feira, dia 20, muitos deles foram à aula com pelo menos uma peça de roupa vermelha, para mostrar apoio às estudantes que passaram por assédio de professores ou funcionários da escola.

Para a pedagoga Caroline Arcari, mestre em educação sexual pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), uma mobilização deste tipo é importante, mas não esconde um recorte de classe. "Será que adolescentes da periferia, sem internet nem hashtag, têm a mesma possibilidade de serem ouvidas e ouvidos, como aconteceu nesse caso?", questiona ela. A especialista defende que todas as escolas incluam a educação sexual em sua grade curricular.

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O tema do assédio sexual mobilizou muitos estudantes de várias escolas hoje, em apoio a alunas do Pensi que relataram esse tipo de abuso na última sexta-feira. Por que você acredita que tantas meninas tão novas estão extremamente sensíveis a esse tema?

Nesses últimos cinco anos, devido às campanhas, os investimentos nas políticas públicas de enfrentamento, do tema ter ganhado visibilidade da mídia e do feminismo ter aberto muitas portas por meio de suas reivindicações, a temática da violência sexual está chegando até as pessoas.  As redes sociais também são ferramentas importantes, o que explica porque as e os adolescentes de hoje estão mais conectados e sensíveis a esses assuntos. Mas é importante destacarmos que essa mobilização tem um recorte de classe. Será que adolescentes da periferia, sem internet nem hashtag, têm a mesma possibilidade de serem ouvidas e ouvidos, como aconteceu nesse caso? Embora seja um acontecimento histórico, ele deve ser propulsor de novas ações protetivas e preventivas. E a mais eficiente delas é a educação sexual.

Você mesmo lembra de alguma situação de assédio de um professor ou funcionário da escola onde você estudava, na sua adolescência?

Sim, eu sofri violência sexual dentro da escola. Na época, sequer avisei algum adulto porque tinha muita vergonha de contar o que aconteceu. Hoje meu trabalho como pedagoga é na área de enfrentamento da violência sexual. Escrevi, aliás, um livro chamado "Pipo e Fifi", que ensina crianças a identificarem toques abusivos e como pedir ajuda em caso de perigo.

Alguns dos estudantes comentam que gostariam de ver mais discussões sobre esse assunto dentro da escola, mas grande parte dos colégios não têm educação sexual em suas grades. Você acha que eles deveriam ter?

Tenho certeza que eles deveriam ter. Aliás, informação sobre sexualidade é um direito de crianças e adolescentes.Embora o senso comum entenda que educação sexual pode incentivar uma iniciação sexual precoce, as estatísticas mostram exatamente o contrário. Alunas e alunos que tem educação sexual iniciam a vida sexual mais tarde, além de estarem 6 vezes menos vulneráveis à violência sexual do que aquelas e aqueles que nunca tiveram informações sobre sexualidade. Indo mais além, a educação sexual também é capaz de prevenir a formação de agentes de violência. Mais do que proteger crianças e adolescentes, ela é capaz de gerar reflexões sobre respeito ao corpo do outro, respeito ao consentimento, respeito ao "não". Sabe-se que 97% dos estupros são cometidos por homens. A maioria deles não tem nenhuma doença ou condição mental que torne impossível controlar impulsos. Abusam porque se sentiram autorizados socialmente a fazê-lo. É com a educação sexual que se educa meninos para que não se tornem agentes de violência sexual pois ela possibilita discutir e repensar sobre a masculinidade vigente, que atualmente é pautada no controle, na agressividade e no abuso de poder.

E deve haver uma educação dos professores e funcionários da escola também?

Eles estão conscientes sobre os limites de relacionamento com os alunos, até porque isso está previsto em lei, tanto no Código Penal, nos crimes contra a dignidade sexual quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Os professores que agiram de forma abusiva são adultos, profissionais contratados e sabiam exatamente o que estavam fazendo. Crimes devem ser tratados como crimes. Os professores que o cometeram precisam e punição, não educação. Quanto à equipe pedagógica, essa sim precisa reavaliar suas estratégias de ação, realizar formações sobre a temática para que esteja preparada para um projeto contínuo de educação sexual. Vale a escola sempre trazer à tona esses assuntos nas reuniões pedagógicas, ouvir alunas e alunos com respeito e acolhimento e incluir pais, mães e responsáveis em um processo de construção de um currículo sobre sexualidade que informe e proteja.

Qual é o melhor modo de as escolas reagirem a esses relatos de assédio dentro de ambiente escolar?

Antes de tudo, as escolas precisam ser ambientes seguros com um posicionamento muito explícito quanto à intolerância ao assédio e violência sexual, seja quando cometido entre pares, em caso da faixa etaria da adolescência, seja quanto a qualquer ato abusivo por parte dos funcionários. Para serem ambientes seguros é preciso que as instituições tragam as temáticas de educação sexual para dentro de suas paredes. Muito além da abordagem sobre sexo seguro, prevenção de gravidez não planejada e uso de preservativos, a educação sexual se refere a assuntos fundamentais de construção de ferramentas que perpassam a autoestima, a auto-imagem, sentimentos, emoções, afetos, as relações de amizade, noção sobre consentimento, assédio e violência sexual, atitudes autoprotetivas, noções de busca de ajuda, denúncia, diálogo entre pares. Desse modo, é impossível criar um ambiente seguro sem uma educação sexual contínua, planejada, de qualidade e que acolha as demandas de cada faixa etária, lembrando que essa temática deve ter início já na infância, asseguradas as devidas metodologias e assuntos compatíveis com cada faixa etária do desenvolvimento dos alunos.

E qual seria o maior erro que elas poderiam cometer?

Já cometeram. Vários twitters se referem à postura omissa da escola em relação a casos antigos, cujas alunas foram apenas transferidas de unidade ou turma quando alguma situação abusiva chegava à coordenação. Isso é preciso ser investigado, pois a postura omissa também está sujeita a pena, caso se confirme que a escola não agiu de acordo com a legislação que a obriga a relatar esses casos diretamente ao Conselho Tutelar ou outro órgão de encaminhamento de denúncias. Se a escola em questão fosse realmente um ambiente seguro, não haveria a necessidade de 65 mil twitters como repercussão em resposta à constante omissão da instituição. O maior erro que qualquer instituição, publica ou privada, pode cometer é invisibilizar a educação sexual como se esses assuntos não fizessem parte da vida, do desenvolvimento e da segurança dos alunos. A escola é responsável pela pluralidadede ideias, conteúdos e desenvolvimento de ferramentas que ppossibilitem o desenvolvimento pleno das cidadãs e cidadaõs. Sim, sexualidade é parte fundamental disso.