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'Escolas precisam ficar abertas o maior tempo possível', diz educador Dirk Van Damme

Para o chefe de pesquisa da OCDE na área, consenso está se formando para que segunda onda de Covid-19 não provoque nova interrupção das aulas
O educador belga Dirk Van Damme Foto: Filip Naudts/CC
O educador belga Dirk Van Damme Foto: Filip Naudts/CC

SÃO PAULO — O impacto global da Covid-19 na educação de jovens é tão sério que, mesmo diante da ameaça de uma segunda onda da pandemia, países europeus estão se organizando para que escolas não voltem a fechar na maioria dos países da região, ainda que outros setores da sociedade sejam obrigados a se retrair.

Para o belga Dirk Van Damme, diretor do Centro para Inovação e Pesquisa em Educação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), estudantes precisam se tornar prioridade na pandemia.

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— À exceção do sistema de saúde, a educação é a instituição social mais afetada de todas pela Covid-19, mais até do que a economia e os empregos — diz o pedagogo.

Van Damme participa hoje do 3º Encontro Anual da Rede Nacional de Ciência para a Educação, que neste ano ocorre online, com transmissão nesta quinta-feira (22) a partir das 18h no site do evento ( www.cpe2020.com.br ).

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Em entrevista ao GLOBO, o educador antecipa um pouco dos assuntos que serão tratados no simpósio e explica por que a pandemia vai exigir que se repense a educação, pois o "velho normal" não vai voltar para a sala de aula. Leia abaixo.

Sobre o que será sua apresentação para o simpósio online?

Primeiro vou traçar um panorama da evidência internacional do impacto da crise da Covid-19 na educação, com um pouco daquilo que já sabemos sobre as perdas de aprendizagem em consequência do fechamento de escolas.

Quero explicar por que acredito que o Brasil não esteja realmente bem preparado para lidar com a perda de aprendizado dos estudantes. Isso tem a ver com problemas como conectividade e falta de computadores e dispositivos disponíveis, tanto nas escolas quanto nos lares. É um problema também a falta de habilidade dos professores, que não se saíram particularmente bem nessa situação, segundo nossos dados.

O impacto da Covid-19 sobre educação foi bastante intenso no Brasil, em  perspectiva, também por causa da duração do fechamento de escolas.

Vou encerrar a apresentação mostrando o que a pesquisa científica pode fazer. O que ela sugere é que o que teremos não será um retorno suave ao velho normal, porque teremos que reimaginar diversas coisas em educação, como o uso da tecnologia.

As escolas voltarão a fechar à medida que novos surtos de Covid-19 emergirem localmente?

O que experimentamos na Europa, com uma segunda onda da Covid-19, foi um consenso geral de que não deveríamos fechar as escolas de novo, mas nos movermos para formas mais híbridas de ensino e aprendizagem, combinando educação à distância e home-schooling com educação presencial e aulas em escolas.

Acontece que não estamos preparados para isso. Precisamos reprojetar o ambiente de aprendizagem de acordo.

A experiência em muitos países durante a primeira onda é que a efetividade da educação à distãncia e do home-schooling não foi muito alta. O que se fez foi colocar documentos escritos à disposição de alunos por e-mail e plataformas simples, filmavam aulas... Foi feito um uso muito simples das tecnologias, e podemos fazer muito melhor do que isso.

A OCDE já possui uma medida de quanto o problema da desigualdade afeta a educação na pandemia e, em contrapartida, é afetado por ela?

Nós temos muitos dados sobre a relação entre educação e desigualdade, mas colhidos antes da crise da Covid-19, até 2018. A gente sabe que ainda naquele ano a disponibilidade de computadores tanto em casa quanto em sala de aula tinha uma diferença enorme quando se comparava estudantes de escolas na faixa de alta renda com as escolas de grupos em desvantagem. É uma lacuna enorme. O aspecto da desigualdade é uma peça importante do cenário.

Em um artigo recente o sr. escreveu que não apenas a Covid-19 afeta a educação, mas falhas na educação estão afetando à resposta à Covid-19, porque diminuem a adesão as medidas tomadas para contenção da epidemia. É um problema brasileiro também?

Eu não tenho dado específico sobre o Brasil. Ainda é cedo, mas já temos uma impressão forte de que o nível geral de habilidades está influenciando a disposição das pessoas a adaptar seus comportamentos. Isso envolve elementos cognitivos, porque é preciso entender as mensagens que chegam, mas também aspectos sociais e emocionais requeridos para se ajustar o comportamento. Nós acreditamos que o vírus está afetando as pessoas de muitas formas diferentes. Ele impacta a renda, causando pobreza, e o impacto tem correlação com etnia, bairro e o nível de habilidades também.

Os conflitos políticos alimentados pela pandemia também afetam a educação e a adesão a medidas contra o vírus?

É uma questão difícil de responder. Em geral, estamos vendo políticos mais à direita favorecendo medidas menos rigorosas e reabrindo economias, mas no campo da educação o cenário é mais misturado. Na Europa, simplificando, há pessoas na esquerda e na direita que defendem a manutenção de escolas abertas, por muitas razões, mesmo diante de alguma preocupação com a segurança sanitária. A evidência disponível, porém, é bastante convincente de que escolas não são a fonte primária de infecção na população.

O consenso em grandes partes da Ásia e da Europa é que se deve manter as escolas abertas pelo maior tempo possível. As disputas ideológicas cercam outras partes do problema. Devemos fechar restaurantes? Lojas?

Sem fechar escolas de novo, podemos ter abordagens intermediárias, alternando visitas à escola. Algumas pessoas vão as segundas e quartas, outras terças e quintas... Essas medidas foram tomadas de forma com que as pessoas possam respeitar o distanciamento social nas classes.

Quanto do impacto da Covid-19 na educação se traduz também em dano à economia?

Ele tem um efeito imediato, sobretudo por impedir muitos pais de trabalhar quando têm que cuidar de seus filhos. Empresas têm que lidar com faltas dos trabalhadores, e isso é um quinhão importante do impacto econômico. Essa é uma das razões pelas quais alguns países relutam em fechar escolas de novo.

Mas há outros tipos de efeito de mais longo prazo. Na semana passada, publicamos um livro pela OCDE que faz uma estimativa do impacto de longo prazo da Covid-19, levando em conta os fechamentos de escolas e a perda de habilidades na população. A escala disso é enorme, da ordem de muitos bilhões de dólares.

Essa é uma das razões pelas quais se defende a prioridade de abertura das escolas, mesmo que fechemos bares, restaurantes, cinemas, transporte público. Esse é o consenso emergindo em muitos lugares do mundo, desde Japão — que não chegou a fechar escolas — China, Cingapura e Taiwan, que foram bem sucedidos, até a Europa, onde o cenário foi mais diverso.

Estamos aqui agora na segunda onda, que chegou com muita força, e não há vozes fortes em favor de fechamento das escolas, também por causa desse impacto econômico.

O Brasil está abrigando agora um fenômeno antes incomum, que é o questionamento da obrigatoriedade de vacinação. O dano da Covid-19 à educação fortalece o movimento antivacina?

É uma boa questão, que não está meu campo de especialidade. Mas estamos mesmo vendo esse tipo de resistência vinda de muitas fontes, incluindo as fake news e histórias circulando em mídias sociais. A educação tem um papel aqui também. É preciso educar jovens e seus pais sobre o risco dessas histórias falsas. O senso comum é que esse é um fenômeno perigoso que precisa ser abordado pela educação. Nós certamente aguardamos ver um impacto do movimento antivacina assim que uma vacina esteja disponível.

Há pesquisas sendo feitas também sobre o impacto da Covid-19 na saúde mental dos estudantes. A OCDE já conhece a extensão do problema?

Esse é um assunto importante. É muito cedo ainda para termos em mãos estatísticas confiáveis, mas há muitas indicações de que a saúde mental das crianças e jovens está sob pressão. Há também os fenômenos da violência e de tensões interfamiliares, com pessoas coabitando espaços pequenos sem poder sair. O estresse é altíssimo para crianças e estudantes.

Não temos muitos dados ainda, mas já há alguns estudos em escala nacional mostrando que é um problema importante.

Como está o impacto da pandemia nos sistemas de avaliação pelo mundo? No Brasil, a realização do Enem foi adiada e é cercada de problemas, com estudantes mais pobres tendo que competir com outros menos afetados.

Isso é um dos grandes desafios, e está prejudicando a trajetória dos jovens em todo lugar. Vimos isso em todos os países que aplicam exames nacionais, com exceção da Alemanha. A Alemanha decidiu que faria seu exame nacional mesmo sob a crise da Covid-19, mas muitos outros países optaram por cancelar, adiar ou substituir por algo diferente.

No Reino Unido, o cancelamento do exame do GCSE (Certificado Geral de Educação Secundária) é um desastre. Tentaram projetar um algoritmo para calcular a nota de cada aluno com base em desempenho passado e em provas nas escolas, mas foi um fracasso total.

Tomaram a decisão então de que todos poderiam reivindicar vagas em universidades. Até expandiram o número de vagas para lidar com isso.

A questão do acesso é um problema generalizado e é um dos assuntos que pesquisadores deveriam repensar, porque nãotem soluções simples. Deveríamos ter sistemas de exames mais resilientes contra esses tipos de eventos.

Com o agravamento da desigualdade, intensificar políticas de ação afirmativa para o vestibular não é algo que pode ajudar?

É difícil dizer. Eu sou, via de regra, um pouco hesitante em defender políticas de ação afirmativa no acesso à educação superior. Há países que fazem isso e o fazem de maneira séria, mas também sofrem grande oposição política.

No meu país, não fazemos isso porque temos um sistema de acesso totalmente aberto. Qualquer um com diploma secundário pode ir para qualquer campo de estudo em qualquer universidade.

Sistemas abertos têm grande vantagem aí, mas em sistemas de admissão mais fechados é possível projetar de maneira inteligente algum tipo de ação afirmativa ou medida de compensação. É preciso ser prudente e fazer isso de maneira séria para não esbarrar nas críticas de que se está abrindo espaço a estudantes sem talento acadêmico às custas de vagas de estudantes de classe média que não estejam nos grupos beneficiados. É complicado. Por razões éticas, há muitos motivos para justificar isso, mas é uma abordagem arriscada.

Muitos pais e mães de alunos estão se sentido assoberbados com o peso de assumir parte da responsabilidade educacional que antes era só das escolas. Isso pode ter um lado bom para os alunos?

Uma das principais desafios da crise da Covid-19 é que as escolas precisam redefinir a relação que têm com pais e mães de alunos. Precisam rever a ideia de que pais apenas despejam os filhos na porta da escola e as crianças são educadas ali, voltando para a família apenas com alguma lição de casa. Acho que esse conceito antiquado está mais ou menos superado. É preciso uma transição para a ideia de uma verdadeira parceria entre pais, escolas e comunidades locais.

Evidentemente, há um risco de que isso também agrave desigualdades, porque famílias de classe média também terão muito mais recursos e oportunidades para tornar pais e mães envolvidos na educação de seus filhos.

Nos Estados Unidos, foi feita uma pesquisa interessante rastreando o comportamento educacional de crianças na internet de acordo com o lugar onde moravam, com dados de busca do Google. Analisaram lugares com alto nível de segregação espacial. Ficou muito claro que crianças vivendo em áreas de classe média avantajadas procuravam por recursos educacionais na internet de modo muito ativo, provavelmente ajudadas pelos pais. Já as crianças vivendo em bairros mais pobres tiveram um grau muito baixo de atividade relacionada a educação na internet.

Isso significa que o ambiente tem muito um impacto, não apenas de acordo com a renda, mas também com a infraestrutura não material e apoio doméstico.

Se você atribuir um papel maior aos pais e mães, essas diferenças vão se ampliar, mas ainda assim eu acredito que uma nova definição da relação entre pais e escolas será necessária depois da crise da Covid-19.

Que mensagem importante o sr. gostaria de passar ao público brasileiro sobre o impacto da Covid-19 na educação?

Acredito que, à exceção do sistema de saúde, a educação é a instituição social mais afetada de todas com a Covid-19 — mais até do que a economia e os empregos. Formuladores de políticas precisam se dar conta de que é preciso um esforço adicional e provavelmente também apoio financeiro para lidar com as consequências disso.

Não se trata apenas de remediar a perda de aprendizado e restaurar o ambiente de ensino e aprendizagem, mas também de inovar nesse ambiente. Estamos convencidos na OCDE de que voltar ao velho normal não será possível. Temos que tornar nossos sistemas educacionais mais resilientes, mais sustentáveis e temos que usar a oportunidade desse desafio para tornar nossos sistemas educacionais melhores.