Por Domenica Faccioli, G1


Quando mesa, cadeira, lápis e caderno não fazem parte da infância de uma forma natural, ter um diploma escolar se torna um desafio e uma conquista.

A realidade daqueles que embarcam nessa empreitada é de pessoas que precisam trabalhar duro durante o dia e decidem encarar de frente uma dupla jornada para estudar à noite.

Para muitos estudantes do Ensino de Jovens e Adultos, o abandono da escola não acontece por vontade própria, mas por contextos tão diversos quanto complexos.

Foi a violência que afastou a cineasta Julia Katharine da escola. "Eu sempre fui muito boa aluna, sempre gostei muito de estudar, mas eu era a única pessoa na escola que se via como aluna. Os outros alunos e toda a equipe do colégio me entendia como menino. Um menino que acreditava que fosse uma menina", conta.

A cineasta Julia Katharine superou a transfobia, voltou a estudar e hoje realiza o sonho de fazer filmes. — Foto: Fábio Rocha / Globo


Após sofrer uma agressão na escola aos 12 anos de idade, Julia ficou hospitalizada durante um mês e não conseguiu mais voltar a estudar. "Nós, mulheres transexuais ou travestis, não abandonamos a escola porque nós queremos, nós somos expulsas de uma forma indireta, mas muito cruel", declara. Julia conta que ao longo dos anos buscou sozinha toda a educação que pode. "Os filmes e os livros foram me dando suporte para eu aguentar tudo", conta.

Só em 2015, quando conheceu o Programa Transcidadania da prefeitura de São Paulo, ela se motivou a retomar o caminho da escola. O projeto auxilia na reinserção de travestis e transexuais na escola.

"Foi lá que eu entendi o quanto era importante estar em um ambiente escolar, poder trocar, conviver, porque a nossa sociedade começa na escola".

Atualmente Julia Katharine faz filmes e não apenas os assiste. "Hoje eu sou uma mulher realizada, eu trabalho com isso [cinema], já ganhei alguns prêmios e tenho viajado o mundo com meus filmes", declara.

Apoio dos professores

A gravidez na adolescência foi o que afastou Fernanda Duarte dos estudos. Ela tinha 14 anos. “Meu mundo desabou. Eu era uma criança que ia cuidar de uma outra criança”, conta. Mesmo acolhida pela família e pela escola, ela teve dificuldades para frequentar as aulas e interrompeu os estudos no nono ano. Após o nascimento do filho, se matriculou em uma escola do EJA.

Fernanda Duarte se afastou dos estudos quando ficou grávida aos 14 anos. — Foto: Fábio Rocha / Globo

“Eu fui toda feliz no meu primeiro dia de aula. Só que quando eu entrei (na sala) e sentei, era uma realidade totalmente diferente. Eu não tinha mais os meus amigos de 15 anos. Era só eu, o professor e um monte de gente muito mais velha”, lembra Fernanda.

Apoiada pelos professores, ela conseguiu terminar o ensino fundamental. Após anos se esforçando para seguir os estudos, enquanto trabalhava para sustentar o filho, Fernanda prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que na época fornecia o certificado de conclusão do ensino médio. “Quando eu peguei o resultado eu já sabia que poderia ser negativo, mas eu queria tanto, que foi uma decepção”, lamenta.

Em 2017, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep) decidiu retomar a aplicação do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) como prova de certificação do ensino médio. “Quando eu soube do Enceeja, que era uma prova com uma linguagem bem mais com a cara do EJA, eu pensei: ‘vai dar tudo certo, vou conseguir, e vou realizar o meu sonho que era me formar’.”

Aos 23 anos, Fernanda estava prestes a dar um passo muito importante: “Dias antes do resultado eu estava uma pilha de nervos. Quando eu vi que tinha conseguido passar eu falei: ‘Pronto. Realizei o meu sonho. Me formei. E aí eu me reconectei com aquela Fernanda lá do passado que queria tantas coisas”.

Em 2019, o Encceja bateu recorde de participantes. Mais de um milhão de candidatos de 613 municípios de todo o país realizaram a prova, 45% a mais do que em 2018.

“Isso mostra que quando existe um caminho e as informações chegam às pessoas, elas abraçam. Elas querem a oportunidade”. Essa é a avaliação do professor Thiago Dias, que após anos formando alunos em turmas presenciais de EJA, viu no ambiente digital a oportunidade de ampliar o acesso à informação para pessoas que buscam um diploma de conclusão. “Termine seus estudos” é um site na internet dedicado a orientar pessoas que não conseguiram concluir o ensino médio no tempo regular.

Thiago Dias formou diversos alunos em turmas presenciais do ensino de jovens e adultos. — Foto: Fábio Rocha / Globo


O primeiro contato de Thiago Dias com o EJA foi como estagiário durante sua formação de licenciatura.

“Eu me vi numa sala com 30 alunos. Pessoas de 18, 30, 40 e 60 anos. O que mais me chamou a atenção nesse primeiro momento era o tamanho do desafio deles”.

Com o tempo, Thiago pode presenciar mais um aspecto da realidade dos alunos do EJA: a evasão escolar. “Conforme iam passando as semanas, meses e os bimestres, a gente só via o número de carteiras vazias aumentar”. Os altos índices de abandono na modalidade chamam a atenção de educadores e têm servido como pretexto para o fechamento de muitas classes. Em dez anos o Brasil perdeu um terço da oferta de EJA, segundo os dados do Inep divulgados em 2019.

Especialistas ouvidos pelo G1 explicam que a queda na oferta não está apenas relacionada ao aumento da escolarização dos adultos, que provocaria menor demanda. Apesar dos avanços, eles estimam que o número de brasileiros sem diploma do ensino médio varia entre 30 e 40 milhões de pessoas. O país tem hoje 3,5 milhões de alunos matriculados no EJA, sendo que 59% deles estão no nível fundamental, de acordo com o Censo Escolar de 2018.

De volta às aulas após abuso e trabalho escravo

Aos 59 anos, Neide Santos não concluiu o ensino médio. A história dela é mais um exemplo de quem volta para a sala de aula após uma série de adversidades. Quando criança, foi entregue pelos pais à uma família com a promessa de ter educação e uma vida melhor. Ao chegar a São Paulo com seis anos de idade, foi parar em uma oficina de costura onde sofreu maus tratos, abuso e trabalho escravo.

Neide Duarte voltou a estudar aos 59 anos — Foto: Fábio Rocha / Globo


Após uma denúncia, ela foi acolhida por uma família. “Eu tive meu registro de nascimento. Eu pertencia a uma sociedade. E eu senti um pouco dessa coisa de felicidade, porque aos 11 anos eu fui pra escola”, conta. Neide conta que na aula de Educação Física, descobriu sua paixão pelo esporte. “Era voltar à minha infância”. Durante um campeonato colegial, ela foi chamada para substituir uma aluna num revezamento 4x100 e venceu. “Aquela medalha foi incrível na minha vida. Foi a primeira vez que eu ganhei algo, que eu conquistei algo novo, porque até lá eu sempre tinha usado algo de alguém”.

Tudo mudou quando ela tinha 16 anos. “Minha mãe biológica apareceu. Fiquei super feliz, só que éramos cinco irmãos. E aí todos os meus sonhos se foram. Eu desisti do meu esporte, do meu sonho olímpico e desisti de estudar”.

Após anos de trabalho para sustentar a família, ela ainda viveu as dores de perder o marido e mais tarde, o filho mais velho. “Ao enterrar meu filho eu prometi pra mim mesma que eu iria reescrever a minha história. Foi daí que nasceu o Projeto Vida Corrida”. Desde 1999, Neide lidera voluntariamente a ONG, que promove inclusão social, saúde e qualidade de vida aos moradores do bairro do Capão Redondo, em São Paulo.

“Depois desse tempo todo eu comecei a me questionar: ‘Eu estou sempre fazendo algo por alguém. Tenho que me permitir realizar meu maior sonho’. Então me dei esse direito e aos 59 anos eu fui pra uma sala de aula”.

Neide conta com emoção sobre a volta à escola. “Foi incrível! Foi como quando você é adolescente e vive seu primeiro amor. Meu coração parecia que ia sair pela boca! E olha que eu sou a mais velha da classe”.

A importância do professor foi o tema do primeiro texto que Neide escreveu ao retomar os estudos. “Eu escrevi professor com pê maiúsculo, e o professor me corrigiu. Eu disse: ‘Por favor, deixa meu professor com pê maiúsculo. Porque o professor é meu mestre, é quem me ensina, é quem me educa, é a pessoa por quem eu tenho mais respeito”.

Neide sonha em ir para a faculdade justamente para um dia ser professora, profissão de Eda Luiz há 52 anos. Atualmente diretora do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, ela percorreu todas as modalidades de ensino até se deparar com o EJA. “Aquilo me encantou, mas eu também comecei a questionar muitas coisas: ‘Como aquele público tão diferenciado, com tanta sabedoria, com tanta aprendizagem, tinha que ter aquele modelo de escola regular?”.

Construção coletiva da escola

Em 1998 ela foi convidada para implementar um projeto de uma educação diferenciada para o EJA no Capão Redondo, na Zona Sul da cidade de São Paulo. “Resolvi abrir os portões e convidar os moradores para construirmos juntos a escola”.

Eda conta que seu maior desafio foi atender ao pedido da comunidade. “Eles queriam uma escola que não tivesse carteiras, nem professores ou matérias!”. A educadora explica que eles queriam se olhar e resolver as questões coletivamente; que o planejamento de estudo fosse discutido e elaborado em conjunto; e queriam estudar uma disciplina por mês.

Hoje o Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Campo Limpo, situado na zona sul da cidade de São Paulo, é referência na educação de jovens e adultos no Brasil e mantém um vínculo permanente com a comunidade e incentiva a participação dos alunos em todo o funcionamento da escola.

“A opção do Cieja Campo Limpo priorizou a escuta, o acolhimento, a resolver os conflitos com a cultura da paz, respeitar a comunidade e ser inserido nesse território”, avalia Eda Luiz, diretora do Centro.

Foi no Cieja Campo Limpo que Bruno Pereira dos Santos conseguiu concluir o ensino médio em 2006 e a realizar um de seus sonhos: “Era ser lixeiro. Quando eu consegui pegar o uniforme da coleta de lixo, olhei e disse: ‘se eu consegui ser lixeiro eu posso ser o que eu quiser. E aí eu comecei a sonhar mais alto’.

Bruno nasceu no Capão Redondo e sua relação com o lixo vem da infância. “O lixo era o lugar onde eu brincava. Então, eu não entendia direito, até os meus sete, oito anos, o que acontecia com os meus brinquedos, depois que caminhão ia embora com a montanha de lixo. Eu cresci com isso na cabeça”.

Aos 15 anos, quando cursava o ensino fundamental, Bruno saiu da escola com um aparelho de telefone roubado pelo grupo de amigos . Ele conta que era um dia de reunião de pais e havia uma movimentação em frente à escola. “A polícia abordou a gente e quando minha mãe chegou na escola eu já estava dentro da viatura.

Bruno foi preso na Fundação Casa do Tatuapé, antiga Febem, e lá concluiu o ensino fundamental. Após seis meses, durante uma megarrebelião, ele fugiu com outros 500 menores e ficou um mês escondido. Com o apoio dos pais, decidiu se entregar e terminar de cumprir a pena. “Depois de quatro meses de prisão eu saí pela porta da frente. A diferença é que da primeira vez que eu fiquei preso eu estava preso também dentro de mim, e da segunda vez, só meu corpo ficou preso, porque minha cabeça já estava aqui fora, sonhando tudo o que eu queria fazer quando saísse de lá. Eu tinha uma listinha de sonhos. No topo dela estava voltar a estudar”.

Formado em gestão ambiental, Bruno hoje é empreendedor social. “Atuo na comunidade onde eu moro, no Capão Redondo, em alguns bairros mais vulneráveis, que é onde estão os outros Brunos, que precisam de mãos e precisam desse olhar e dessa oportunidade, que foi a mesma que eu tive”.

"Segunda chamada": o poder da educação

Repercutindo Histórias - Segunda Chamada: Dona Eda transforma vidas pela educação em escola .

Repercutindo Histórias - Segunda Chamada: Dona Eda transforma vidas pela educação em escola .


Em São Paulo, na mesma sala de aula que serviu de cenário para a série 'Segunda Chamada', da Globo, pessoas reais contaram suas experiências com a escola, a educação e com os estudos. Todos esses depoimentos podem ser vistos no projeto da Responsabilidade Social da Globo: REP - Repercutindo Histórias.

A série da Globo ‘Segunda Chamada’ é um convite à reflexão sobre o poder transformador da Educação. As personagens revelam as vivências e os exemplos de força de vontade de pessoas que compõem o ensino noturno para jovens e adultos.

A atriz Debora Bloch que faz parte do elenco, interpreta Lúcia, uma professora de Língua Portuguesa. No lançamento da série para a imprensa em São Paulo a atriz comentou sobre a preparação para a sua personagem. “Para compor a Lúcia, fui a muitas escolas de ensino para jovens e adultos; e conversei com muita gente. O que me tocou muito foi ver como os professores são comprometidos com o trabalho e especialmente com os alunos. Só reforçou minha esperança vê-los ensinar. Saber que tem gente que acredita que este trabalho vai transformar o país em algo melhor só me fez bem. Acredito que essa seja uma série a ser dedicada aos professores, a esses heróis”.

O último episódio da série vai ao ar na terça-feira, 17 de dezembro de 2019.

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