Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Escola realmente sem partido

Em vez de esforço pedagógico, movimento prefere estimular denúncias

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

O movimento Escola Sem Partido gostaria que uma lei vedasse os professores de apresentarem suas crenças e ideologias em sala de aula como se correspondessem a fatos e conhecimentos.

Eis as intenções iniciais do Escola Sem Partido: "Numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade". Entendo que realizar esse objetivo é difícil:

1) Os professores são seres humanos, que carregam consigo esperanças e convencimentos mais ou menos bizarros —ou seja, como todos nós, eles são moldados por uma tralha de crenças e visões ideológicas do mundo.

2) É difícil que alguém, na exposição (e na própria aquisição) de seu saber, consiga abstrair dessa tralha e faça rigorosamente a diferença entre suas crenças e o que seria, digamos, o "conhecimento".

Não sei, aliás, se essa separação é sempre possível ou produtiva —mas dá para esperar e pedir que o professor, ensinando, saliente essa diferença.

Isso é fácil quando se trata de crenças genéricas. Por exemplo, "eu sou liberal e acredito no progresso", "eu sou cristão e acredito em Deus", "eu, marxista ou não, acredito que o motor da história seja a luta de classe".

A coisa se torna mais complexa quando a matéria ensinada é, por assim dizer, atravessada pela crença do professor. Mas não é impossível. Exemplo: em vez de dizer "os camponeses foram expulsos das terras para que houvesse mão de obra barata para a indústria nascente", o professor pode (e talvez deva) dizer "os camponeses foram expulsos das terras, e eu tendo a acreditar que foi de propósito, para que houvesse mão de obra disponível para a indústria nascente. Outros pensam que foi uma coincidência ou que a indústria nasceu porque ela se tornou possível a partir do momento em que houve mão de obra faminta vagando solta pelas terras".

A adoção de uma ideologia diferente da do professor seria aceita sem consequência nas notas —à condição, claro, que essa dissidência não fosse um pretexto para a ignorância.

Enfim, o que parece necessário para chegar a uma "escola sem partido" é um tremendo esforço pedagógico na hora de formar quem almeja se tornar professor —esforço para ajudá-lo a fazer sempre a diferença entre as suas crenças e o conhecimento que ele dispensará.

Por uma razão misteriosa, o Escola Sem Partido não pensa nisso, mas prefere convidar os estudantes a denunciar seus professores caso eles pareçam apresentar suas crenças e ideologias como conhecimento. Sinceramente, eu preferiria educar minhas crianças em casa a expô-las a um ambiente escolar paranoide, onde elas poderiam dedurar seus professores como maneira de solucionar quaisquer conflitos com eles.

Mas esse é um detalhe. Ao meu ver, a maior falha do Escola Sem Partido é que, contrariamente à sua proclamação inicial, ele não almeja uma escola sem ideologias (ou, ao menos, capaz de fazer a diferença entre ideologia e conhecimento).

O Escola Sem Partido parece ter sido criado só como instrumento de uma luta ideológica, na qual há uma ideologia do bem (que, de repente, nem ideologia admite ser) e uma do mal.

Para mim, doutrinação é quando um professor declara que a luta de classe "é" o motor da história, mas também quando um professor fala como se a existência de Deus fosse um fato, não uma crença ou ideologia dele.

Da mesma forma, doutrinação seria um professor estilo anos 1970 pregar a liberação sexual. Mas também seria doutrinação se um professor pregasse a castidade ou a abstenção até o casamento. Preferiria que ambos: 1) declarassem sua crença e ideologia respectivas; 2) logo apresentassem aos alunos a história da sexualidade e de sua repressão, talvez sobretudo do terceiro século do cristianismo até o dia em que Maria se tornou perpetuamente virgem.

Se quisermos proteger nossos rebentos da ideologia, seria bom protegê-los de todos os que apresentam crenças como fatos, inclusive dos que oferecem as crenças da ideologia dominante como se fossem conhecimentos estabelecidos.

Um dos meus professores de filosofia (que, aliás, era jesuíta) disse um dia para minha classe: meus senhores, sinto lhes dizer que o conhecimento, diferentemente da eucaristia, não se distribui em partículas.

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