Escola deve aproximar conteúdo da realidade do aluno, diz jovem do Maláui que inspirou filme

Para William Kamkwamba, 33, currículos seriam mais eficientes se ajudassem no reconhecimento de dons individuais

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São Paulo

Como ter motivação para estudar, fazer projetos e correr atrás de sonhos quando o mundo parece conspirar contra tudo isso? William Kamkwamba, 33, que inspirou o filme “O Menino que Descobriu o Vento”, tem credencias de sobra para ajudar a buscar respostas para essa questão central da educação na pandemia e na pós-pandemia.

Como relata o longa-metragem, da Netflix, ele salvou a sua família e a vizinhança, arriscadas a morrer de fome em meio a uma das mais severas secas do Maláui, na África, em 2002, construindo, com material coletado no lixo, um moinho de vento que gerou energia elétrica para bombear água de um poço e irrigar a plantação. Tinha apenas 14 anos e havia sido obrigado a abandonar a escola por não ter como pagar a anuidade de US$ 80 (aproximadamente R$ 400 hoje).

Para aprender como conceitos da física poderiam lhe ajudar em seu invento, estudou sozinho na biblioteca do vilarejo. À época, ele só comia uma refeição por dia, uma pequena porção de mingau de farinha de milho, e testemunhava saques de alimentos por pessoas desesperadas de fome, além de mortes por inanição.

William Kamkwamba, que inspirou o filme "O Menino que Descobriu o Vento" - Divulgação

O moinho de vento ficou famoso, Kamkwamba pôde retomar os estudos e se formou em engenharia ambiental nos EUA. Escreveu, em parceria com o jornalista Bryan Mealer, um livro sobre sua história, que vendeu 1 milhão de exemplares e deu origem ao filme. Hoje trabalha com projetos de fornecimento de água e de acesso à educação.

Ele é um dos convidados de um evento internacional, online e gratuito, do Instituto Ayrton Senna, nesta terça-feira (15). Psicólogos, educadores, secretários de educação e personalidades de diferentes áreas discutirão a motivação como um catalisador do aprendizado, propondo políticas públicas e práticas pedagógicas para motivar crianças e jovens.

Como era a sua vida na escola antes de ter de abandonar os estudos em razão da seca e da fome que assolaram o Maláui em 2002? Era ótima. A escola era o lugar onde podíamos encontrar amigos e se empolgar em aprender. Não era a mais incrível do mundo, mas havia classes com algumas carteiras, o suficiente. Alguns professores eram incríveis, os que realmente queriam que os alunos dominassem um assunto. A paixão deles nos levava a fazer o nosso melhor. Eu tinha aulas de inglês, biologia, física, ciências, geografia, agricultura e chichewa [uma das línguas do Maláui].

Você sabe quanto por cento dos alunos no Maláui chegam à universidade? Não sei os números exatos, mas não são muitos. No Maláui e em muitos lugares, temos que considerar qual deve ser o objetivo da educação. E não pode ser apenas conseguir um diploma. Em alguns lugares, se formar e ter um bom currículo significa acesso a bons trabalhos e longa carreira, mas não é assim em muitas partes do mundo.

Os pais no Maláui veem tanto um filho que abandonou a escola fundamental quanto outro que se formou no ensino médio cultivando a terra com as mesmas técnicas. Quero que a educação no Maláui crie um mundo no qual quem prossegue nos estudos possa ensinar aos outros técnicas mais eficientes, sejam capazes de cultivar melhor os alimentos e consigam gerenciar suas produções. A educação é mais poderosa quando é colocada a serviço de enfrentar necessidades do mundo real.

Quando você teve de abandonar a escola, como conseguiu motivação para seguir estudando sozinho na biblioteca? Senti que a educação iria me permitir ter mais opções na vida. Pensei que, mesmo não podendo estar matriculado na escola, eu ainda podia ir à biblioteca e seguir com as tarefas escolares. Não queria que minha vida fosse limitada porque não tive educação. Para mim, a educação era a chave para destrancar várias portas, e essa ideia me manteve focado em aprender apesar de tudo.

Algo que chama a atenção em sua história é que o processo de aprendizado engloba o conteúdo aprendido na escola, a possibilidade de colocar as teorias em prática e a de usar o conhecimento para mudar a sua realidade. As escolas seriam mais eficientes se estivessem mais conectadas à realidade de cada aluno? As escolas têm de cumprir melhor o seu papel mudando a forma como entendem a educação: em vez de ser algo que o estudante acompanha passivamente, deve ser um processo de que ele participa. Tenho uma grande admiração pelo educador Paulo Freire: estudantes não podem realmente atingir a promessa da educação quando se acredita que são vasos vazios a serem preenchidos por outras pessoas.

Na prática, o grande desafio de proporcionar uma educação mais individualizada é o número de estudantes. Quando há muitos em uma sala, é mais difícil, mas, quando é possível, esse tipo de educação pode ter um grande impacto. De qualquer forma, as escolas podem ser melhores se respeitarem o conhecimento que cada estudante traz para a sala de aula e reconhecer que todos têm talentos. Os currículos seriam mais eficientes se ajudassem os professores a reconhecer dons individuais e apoiassem os estudantes para aprimorá-los.

Depois que o seu moinho de vento se tornou mundialmente famoso, como a sua vida mudou? Eu pude retomar os estudos. Primeiro fui para a African Bible College, em Lilongwe, a capital do Maláui, e coloquei em dia o que havia perdido quando estive fora da escola. Estudei na African Leadership Academy, na África do Sul, e me formei em engenharia ambiental na Dartmouth College, nos EUA. Nesses anos, tenho viajado pelo mundo, aprendido com diferentes pessoas e organizações e reunido informações para trazer de volta ao Malauí.

Atualmente, estou trabalhando na criação do centro de inovação Moving Windmills [movendo moinho de vento], no Maláui. Será um lugar em que jovens tenham acesso a mentores e tecnologia, um polo de geração de pessoas criativas capazes de resolver problemas. Duas coisas que gostaria de ter tido quando construí meu primeiro moinho: orientação e ferramentas. Perdi muito tempo em etapas simples porque não tinha alguém para me orientar e precisava construir as ferramentas.

Mesmo hoje, no Maláui, se um jovem tem uma boa ideia, é fácil que seja tirado do caminho por pequenos obstáculos, porque a inovação exige que coloque todo o sustento dele em jogo. Quero reduzir o risco para que os jovens possam criar soluções simples para os desafios da agricultura.

Como o Maláui tem sido impactado pela pandemia, em especial na educação? Foi um ano estranho no Maláui e em todos os lugares. As escolas fecharam, abriram, fecharam, abriram e fecharam de novo. Professores, alunos, pais, avós –o efeito cascata só será compreendido daqui a muitos anos. Busca-se formas de aprender, mesmo com as escolas fechadas. As pessoas são resilientes em todos os lugares.

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