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Brasil

Entenda quem foi Paulo Freire e as críticas feitas a ele pelo governo Bolsonaro

Presidente disse que usaria 'um lança-chamas' para expulsar do MEC as ideias do educador, principal referência internacional do Brasil nessa área
O educador Paulo Freire, em foto de 1989 Foto: Silvio Correa / Agência O Globo
O educador Paulo Freire, em foto de 1989 Foto: Silvio Correa / Agência O Globo

RIO — Um dos maiores nomes da educação brasileira e referência mundial, Paulo Freire voltou ao centro de um debate político, quase 22 anos após sua morte.

O presidente Jair Bolsonaro defendeu, em seu plano de governo, "expurgar a filosofia freiriana das escolas". Os filhos e o mentor intelectual do presidente , o ideólogo de direita Olavo de Carvalho , também atacam o legado de Freire .

Apesar de ter sido convocado pelo ex-presidente João Goulart (1961-1964) a criar um programa nacional de alfabetização, Freire não chegou a concretizar esta meta.

Com uma passagem de dois anos pela secretaria municipal de educação de São Paulo e com participação em secretarias do Nordeste, hoje sua metodologia é debatida nas faculdades de pedagogia , mas não norteia as políticas públicas educacionais federais.

Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Infantil e Fundamental, aprovada no Conselho Nacional de Educação (CNE) — e que está em fase de contribuição regional para finalização dos currículos no final do ano —, já não cita Paulo Freire . A BNCC do Ensino Médio, com discussões ainda mais recentes, também não faz referência ao educador.

Quem foi Paulo Freire

Pernambucano formado em advocacia pela Universidade de Recife, em 1946, o pensador decidiu que não seguiria a carreira e decidiu tornar-se educador em uma escola de ensino médio na periferia da cidade.

Começou a dar aulas no Sesi em 1947, com a missão de alfabetizar trabalhadores adultos. Por se destacar como docente, foi nomeado chefe do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social de Pernambuco.

Em suas experiências, notou que as abordagens de alfabetização para crianças e jovens eram inadequadas aos adultos. Começou, então, a fazer experimentos que, depois, se tornariam os princípios freirianos.

Em 1961, tornou-se chefe do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife e, um ano depois, desenvolveu um de seus trabalhos mais marcantes: criou um método que permitiu alfabetizar um grupo de 200 cortadores de cana-de-açúcar em apenas 45 dias.

O educador defendia um ensino que fosse próximo ao repertório social e cultural de cada um , e que considerasse cada experiência de vida, principalmente a do trabalho, já que, naquele caso, ele estava alfabetizando trabalhadores.

Na prática, em vez de aprender a escrever a palavra “palácio”, um adulto de classe popular poderia começar pela palavra “tijolo”, já que faz parte do seu contexto social.

A partir do momento em que as pessoas se identificassem com o conteúdo, a aprendizagem se tornaria mais prazerosa, segundo Freire, e o processo se daria de uma forma mais natural.

Estudos posteriores também mostraram que o processo de aprendizado se dá a partir das relações estabelecidas não só dentro das escolas, mas em todos os espaços sociais, reforçando o que o educador defendia.

Seu trabalho no Nordeste chamou a atenção do então presidente da República, João Goulart, que pediu a ele que expandisse sua metodologia para um plano nacional de alfabetização.

No entanto, com o golpe militar de 1964, que tirou Goulart do poder, todos os programas foram cancelados. Durante a ditadura, Freire foi preso e exilado do país.

No relatório de inquérito que acusou Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima afirmou que o educador era “um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”.

Durante o exílio, ele passou por mais de 30 países trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra. Após 15 anos, Freire voltou ao Brasil em 1980, beneficiado pela Lei da Anistia.

Ao retornar, trabalhou na PUC de São Paulo, como professor, e na Unicamp. Depois, chegou a ser secretário municipal de educação de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, entre 1989 e 1991, cargo que passou a Mário Sérgio Cortella.

Paulo Freire morreu em 2 de maio de 1997, vítima de um ataque cardíaco, em São Paulo.

Alfabetização contra a desigualdade

Paulo Freire afirmava que alfabetizar significava fazer com que as pessoas se tornassem conscientes de suas posições no mundo. Depois de terem uma formação crítica a partir da leitura e da escrita , elas deixariam de ser oprimidas, e estariam, de fato, inseridas na sociedade, com participação ativa nas tomadas de decisão e em assuntos do país.

Suas ideias lhe renderam reconhecimento internacional. É o brasileiro com a maior quantidade de títulos de doutor honoris (46). Em 2016, Elliot Green, professor-associado da London School of Economics, divulgou um estudo em que mostrou que Paulo Freire foi o terceiro pensador mais citado em trabalhos acadêmicos de língua inglesa, com 72.359 menções.

O pernambucano também defendia a escola em tempo integral. Manter os jovens mais horas no colégio, defendia ele, era uma forma de mostrar a eles que o caminho da educação pode melhorar sua condição de vida, ao mesmo tempo em que os afastava da criminalidade.

No entanto, apesar de o nome de Paulo Freire ser muito citado nas universidades, poucas escolas seguem, de fato, sua filosofia.

Olavo de Carvalho, opositor ferrenho

O ideólogo de direita Olavo de Carvalho critica Paulo Freire há muito mais tempo do que o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos.

Em abril de 2012, Carvalho fez um vídeo criticando o projeto de lei que tornava Freire patrono da educação brasileira.

— Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire ? Algumas dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisam responder. Todos já sabem que, pelo critério do “pelos frutos os conhecereis”, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido.

No vídeo, Carvalho afirma que as técnicas de Freire não produziram erradicação do analfabetismo “em parte alguma” do mundo, e chama sua retórica de “bolorenta”. Ele divulga, então, um texto publicado no jornal "Diário do Comércio".

Em 14 de janeiro de 2019, referindo-se a este mesmo video, Carvalho fez uma publicação no Facebook afirmando que “nesse artigo não faço pessoalmente NENHUMA crítica a Paulo Freire” e conclui que “ Paulo Freire nunca esteve na esfera dos meus interesses, muito menos no centro dela”.

Em 2015, o ideólogo fez outra publicação no Facebook:

Paulo Freire , cujo maravilhoso sistema de ensino jamais produziu um escritor, um cientista, um filósofo ou mesmo um executivo competente, limitando-se a transformar milhares de coitadinhos em igual número de coitadinhos, é o patrono de uma educação nacional que produz analfabetos funcionais em massa.”

Os Bolsonaro contra Freire

Jair Bolsonaro e seus filhos criticam o educador pernambucano desde muito antes das eleições de 2018.

Em maio de 2017, quando completaram-se 20 anos da morte do educador, Eduardo Bolsonaro publicou em sua conta de Facebook: “20 anos sem Paulo Freire … GRAÇAS A DEUS!”.

Ele ainda o chamou de “versão brasileiro” (sic) do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci e afirmou que Freire “não entendia de pedagogia, mas sim tão somente levava para as escolas a luta de classes de Karl Marx”.

Na mesma semana, subiu ao púlpito da Câmara dos Deputados citando a publicação e complementando:

Paulo Freire era aquele teorólogo (sic) que gostava de pegar fatos simples e encher linguiça em suas obras. "Pedagogia do excluído" (na verdade, "Pedagogia do oprimido"), dentre outros livros que ele escreveu. O que ele fez foi levar para dentro das escolas a cultura de Karl Marx.

O livro escrito por Freire e citado por Bolsonaro é a única obra brasileiro a aparecer na lista das 100 mais pedidas pelas universidades de língua inglesa, segundo o projeto Open Syllabus, que reúne dados do mundo acadêmico.

Em junho de 2018, novamente Eduardo publicou críticas ao educador: " Paulo Freire , discípulo de Antonio Gramsci, pensa que as escolas são locais não para transmissão do conhecimento e sim para transformação da sociedade. Para Freire, o importante não é aluno tirar boas notas, mas sim ter 'senso crítico', leia-se: gritar fora Alca, fora FMI, fora FHC, fora Temer, fora Bolsonaro…"

Durante a corrida eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro afirmou que pretendia usar um "lança-chamas" no Ministério da Educação para tirar de lá as ideias de Paulo Freire .

— Tem de ser alguém que chegue com um lança-chama e toque fogo no Paulo Freire . Esse método deu errado, tem de acabar com isso. Tem que voltar a pôr tabuada na régua do filho.

A afirmação causou polêmica, mas Bolsonaro fez novamente uso da figura de linguagem do lança-chamas: disse que seria preciso “invadir o ministério (da Educação ) e tirar simpatizantes do Paulo Freire de lá“. Questionado, reiterou suas críticas e concluiu: “Falei, sim, do lança-chamas. Qual o problema?”

No programa de governo apresentado pelo então candidato, a ideia de expurgo constava entre as propostas apresentadas para a educação. “Precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire ”, dizia o texto.

Ministro da Educação "olavete"

Ao tomar posse no cargo, na semana passada, o atual ministro da Educação , Abraham Weintraub, reafirmou as críticas feitas por seu mentor, Olavo de Carvalho , ao educador:

— Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade ... Por quê a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países?

A metodologia de Freire não é adotada ou estudada apenas no Brasil. Em outros nove países há centros de estudo dedicados à obra do educador brasileiro, como o da Universidade de Tampere (Finlândia).