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Brasil Educação

Entenda o CAQ, mecanismo do novo Fundeb e por que ele provoca intenso debate entre educadores

Custo aluno qualidade é um instrumento para se obter qual valor necessário a ser investido na educação. As estratégias para se chegar a ele é que geram tanta discussão
Escola Técnica estadual Adolpho Bloch, na Mangueira, Zona Norte do Rio Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Escola Técnica estadual Adolpho Bloch, na Mangueira, Zona Norte do Rio Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

RIO - O encaminhamento da aprovação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que deve ser votado nesta quinta-feira no Senado, ainda tem um ponto de dissonância: o instrumento chamado Custo Aluno Qualidade (CAQ), mecanismo que tem gerado intenso debate entre especialistas de educação. Ele é um instrumento para se obter qual valor necessário a ser investido por aluno. As estratégias para se chegar a esse valor é que geram tanto debate.

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A Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, que desde 2002 tem se debruçado sobre o tema, com pesquisas publicadas a partir de 2007, defende que o CAQ seja composto por uma lista de elementos, com os seus respectivos preços, que garantam um bom aprendizado, segundo o grupo. Estes elementos vão desde questões estruturais, como bibliotecas, até questões pedagógicas, como elaboração de projeto político pedagógico.. Com isso, o dinheiro direcionado para as escolas teriam que ser investidos para que esses itens específicos pudessem constar no dia a dia dos alunos.

Outros especialistas em educação, no entanto, avaliam que estes elementos, no atual contexto, são exigências altas demais e que poderiam gerar efeitos colaterais indesejados. Um deles seria a escolha de gestores em priorizar o cumprimento dessa lista de insumos ao invés de fazer investimentos que também são positivos para a educação, como ensino integral ou até ampliar o número de vagas. Esses especialistas sugerem consolidar o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), instrumento que prevê condições básicas de funcionamento escolar.

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Segundo Daniel Cara, professor de Política Educacional e Fundamentos Econômicos da Educação na Faculdade de Educação da USP e dirigente da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, a proposta do grupo determina quais são os insumos necessários para os professores ensinarem e os alunos aprenderem por meio do que eles chamam de “ingredientes de qualidade”.

Essa lista inclui número adequado de alunos por turma; investimento em infraestrutura escolar, como bibliotecas e laboratórios de Ciências; preço de luz por aluno; apoio financeiro ao projeto pedagógico escolar; e o salário dos profissionais da educação.  Com esses valores, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende que o valor médio ideal para investimento por aluno seria de R$ 7.476 em 2020.

— Esse é um instrumento poderoso para os pais saberem o que uma escola não pode deixar de ter. Com isso vão pressionar os gestores e, com o tempo, o dinheiro do Fundeb vai chegando e será usado para o benefício das escolas públicas. O CAQ é o único instrumento capaz de fazer com que toda a verba da educação seja bem investida, sem desperdício e em favor da qualidade das escolas públicas —  explica. — A criança aprende melhor num espaço digno para o ensino-aprendizado.

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O GLOBO revelou no último mês que quase dois milhões de alunos brasileiros estudam em colégios públicos sem acesso à água potável. Além disso, 800 mil estão matriculados em escolas sem esgoto. 148 mil em unidades sem energia e outros 614 mil não têm banheiro no local onde estudam. Isso pode ser resolvido com a implementação do CAQ.

A posição da Campanha Nacional pelo Direito à Educação é acompanhada por uma série de entidades de pesquisadores educacionais. Entre elas, estão a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Na última semana, órgãos de controle como a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) e o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) também assinaram uma carta em defesa desse conceito de CAQ .

Divergências

Na última semana, o Todos Pela Educação publicou dois artigos a respeito do tema , o que gerou intenso debate entre educadores. Segundo a análise, “e a depender de como venha a ser regulamentado, poderá gerar consequências que certamente não eram as intenções dos legisladores”.

A crítica de Priscila Cruz, presidente do Todos Pela Educação, é a de que essa lista extensa de insumos obrigatórios que resulta  um valor a ser atingido desconsidera a capacidade de financiamento das redes e as diferenças regionais. Segundo ela, isso pode causar efeitos como judicialização em excesso e imobilidade de gestão.

— Não dá pra admitir no país escolas sem a infraestrutura mínima de não ter água tratada, quadro negro decente, quadra coberta, biblioteca, livros, profissionais formados para mediação da leitura.  A gente precisa, sim, ter condições básicas para chamar de escola o que é escola.  Todo mundo concorda com isso. A estratégia para se chegar a essa escola digna é que difere — explica Cruz.

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Na avaliação de Cruz, a constitucionalização da lista de insumos com uma exigência mais alta do que a capacidade de investimento das redes poderá inibir que gestores priorizem o ensino integral, por exemplo, por ter um custo aluno qualidade (ou seja, o valor necessário a ser investido) maior em comparação com o horário parcial.

— Com medo da judicialização, ele pode tomar uma decisão que pode minimizar o potencial de aumento da qualidade da oferta. Não tenho dúvidas de que a intenção de quem defende essa ideia de CAQ é uma melhor oferta da educação básica. Mas não acho que essa é a estratégia adequada — afirma Cruz.

A posição da presidente do Todos é que teria sido mais adequado ter inserido o CAQi. Ou seja, que fosse estabelecido um padrão básico de qualidade para todas as escolas e que, a partir daí, cada rede decidisse o caminho a seguir. Essa é uma posição que também é defendida por Nina Ranieri, coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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— Assim cada governo atende aquele mínimo e pode passar paulatinamente a fazer mais, com mecanismos de ajustes locais e incentivos para condições indispensáveis — avalia Ranieri. — Uma lista muito rígida corre o risco do gestor não ter recursos para atender tudo o requer e depois ser culpado por isso.

'Máximo valor mínimo'

Binho Marques, ex-secretário de Articulação com os Sistemas de Ensino do MEC, concorda com o conceito de CAQi, mas considera que a maneira como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação define o valor do CAQi complica sua viabilidade e pode trazer problemas.

— Para ela o CAQi não pode ser definido a partir do recurso disponível, mas a partir de uma lista de insumos considerada por ela como indispensáveis para a qualidade e que foi precificada por ela — explica. — Não é possível ter um CAQi diferente no valor mínimo nacional. Isso pode existir (e deve) como bandeira de luta da sociedade para ampliar os recursos para a educação, que de fato é subfinanciada, mas não pode ser uma regra, a ser seguido pelos sistemas de ensino. Se for assim, a gestão da educação vai travar com judicialização e muita confusão sobre que padrão de qualidade seguir.

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Segundo ele, não se pode definir um custo da qualidade sem que o país tenha um referencial de qualidade pactuado entre as três esferas de governo. Ele ainda defende que não se estabeleça uma relação direta entre uma lista de insumos e a qualidade, ainda mais padronizada para todo o país.

— O padrão de qualidade não pode ser uma qualidade padrão. Isso pode matar a criatividade e a capacidade de cada sistema se adaptar às suas condições geográficas e culturais. O ideal é que exista um sistema de avaliação da qualidade da gestão das redes de ensino que não se transforme numa camisa de força e engesse os sistemas de ensino, que um CAQi baseado em lista de insumos certamente fará.

Segundo ele, esse referencial de qualidade teria que ter aspectos como: a rede escolhe diretor por critérios técnicos? Há um padrão mínimo de funcionamento da escola? Tem um projeto curricular alinhado à BNCC? E aí as redes seriam classificadas em patamares de qualidade (como bom, adequado e abaixo do esperado) para o cidadão entender a posição da sua rede e cobrar o gestor.

Já a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no Distrito Federal, Catarina de Almeida Santos, lembra que o CAQi já foi aprovado no Plano Nacional de Educação (PNE), como o primeiro passo para chegar ao CAQ, e deveria ter sido implementado desde 2016.

— Qual o sentido de constitucionalizar o CAQi, que além de ser transitório já caducou sem ser regulamentado e não o CAQ, que é o mecanismo previsto para ser permanente?  Ambos querem garantir as condições para a efetivação do direito à educação. Só que seria feito de forma gradativa e fazia sentido no PNE. Na Constituição precisa ir o que é permanente — explica a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

Santos afirma que o direito à educação para todos, inclusive para os que não tiveram acesso na idade obrigatória, está na Constituição há 31 anos. E tem entre seus princípios igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; e padrão de qualidade.

— Nós temos no país 11 milhões de analfabetos, 70 milhões de pessoas com 25 anos ou mais que não tiveram seu direito a educação básica garantido, milhões de crianças sem creche e pré-escola e mais de um milhão de estudantes do ensino médio em idade obrigatória fora da escola. E não tem um único gestor preso. Por que o CAQ, que é justamente o mecanismo para corrigir essas desigualdades geraria essa judicialização? O CAQ oferece parâmetros claros para que o gestor cumpra a sua função e força que o regime de colaboração aconteça. Quem fizer o dever de casa não tem como ser processado — analisa.