Ensino técnico também desenvolve habilidades socioemocionais

Formação pode e deve desenvolver empatia, tolerância ao estresse e criatividade

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O estudante Gabriel Lopes Xavier, 17, na aula do curso do Senai de design de mídias digitais, em São Paulo

O estudante Gabriel Lopes Xavier, 17, na aula do curso do Senai de design de mídias digitais, em São Paulo Eduardo Knapp/Folha Press

Philippe Scerb
São Paulo

Se a educação como um todo deve ser repensada diante das mudanças na economia, o ensino técnico profissional é especialmente atingido –e pode ficar desatualizado com rapidez.

Estudos já mostraram graus de descasamento entre formação técnica e demandas da economia, assim como seu baixo impacto sobre a empregabilidade e a renda dos alunos, ao menos no longo prazo.

Mas, diferentemente do que o preconceito nos faz supor, curso técnico também promove competências em alta: as habilidades socioemocionais como empatia, tolerância ao estresse e criatividade.

Estudo conduzido pelo professor da Escola de Economia da FGV-SP André Portela e outros mostrou que o ensino profissionalizante pode, embora não seja seu sentido primordial, desenvolver habilidades não vinculadas a ocupações específicas.

Alunos durante aula do curso de design de mídias digitais da turma do 3º semestre no Senai (unidade do Campos Elísios, em São Paulo)
Alunos durante aula do curso de design de mídias digitais da turma do 3º semestre no Senai (unidade do Campos Elísios, em São Paulo) - Eduardo Knapp/Folhapress

A pesquisa selecionou aleatoriamente 70 alunos e alunas de cursos variados de nível médio (informática, tecnologia alimentar etc.) oferecidos pelo Sistema S em quatro cidades de Santa Catarina. Ao avaliar os efeitos sobre salário, emprego e renda, concluiu que os cursos aprimoraram as competências não-cognitivas das alunas.

O fator determinante para o sucesso profissional das estudantes foi a aquisição de habilidades transversais não repetitivas, segundo Portela. Em contato direto com o mundo e a cultura do trabalho, as alunas expandiram a capacidade de solucionar problemas, lidar com pessoas e gerir situações de estresse.

“É como se, por linhas tortas, o ensino profissional estivesse dando atributos não específicos ao exercício de determinadas atividades, mas indispensáveis para a carreira, em um mercado em constante transformação”, diz Portela.

O sociólogo Simon Schwartzman, referência no debate sobre a relação entre educação e trabalho, se preocupa com a oferta de cursos que podem ficar obsoletos.

À medida que funções são substituídas por robôs e algoritmos e ocupações desaparecem, outro tipo de conhecimento é demandado.

“Estamos formando mecânicos automotivos. Daqui a pouco o carro vai ser um computador, mecânico não vai servir para nada. Estamos diante de um risco real de formarmos pessoas para mercados que não sabemos se continuarão”, diz Schwartzman.

Daí a importância de aumentar a articulação entre formação profissional e setor produtivo, que tem melhor condição que os governos de determinar quais são as competências procuradas agora por atores econômicos.

Um trabalho dos economistas Lucas Mation e Stephen O’Connel mostrou a importância do envolvimento das empresas na definição das formações oferecidas pelo Estado.

Os pesquisadores compararam o efeito sobre a empregabilidade de pessoas vindas do seguro desemprego em duas modalidades do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego). Em uma, o próprio governo definia os cursos. Na outra, companhias privadas informavam ao programa ocupações e cursos que precisavam, e em quais regiões.

A pesquisa acompanhou alunos que fizeram os cursos entre 2014 e 2015, medindo o efeito da formação deles sobre a empregabilidade até 2019. Foram comparados todos os dados, abrangendo todos os cursos de todos os municípios do Brasil no período.

O impacto dos cursos profissionalizantes foi pequeno, de forma geral. Mas uma diferença relevante foi notada entre as duas modalidades.

O efeito médio sobre empregabilidade foi duas vezes maior para alunos que fizeram curso definido a partir de informações passadas por empresa privada. Nesses casos, um ano depois do curso, a chance de a pessoa estar empregada era de mais 6,4% em relação a quem saiu do seguro desemprego e não fez curso algum. Já para alunos dos cursos definidos pelo próprio programa nacional, esse efeito médio foi de 3,1%.

“Diante de demandas que mudam rápido, o governo tem dificuldade de prever o que ofertar, sem contato com o setor privado e a economia real. Mesmo que o efeito sobre a empregabilidade continue sendo relativamente pequeno, ele foi dobrado por meio de uma informação que muda a forma como a oferta é definida”, afirma Mation.

No Senai, a preocupação de Schwartzman é, pelo menos em parte, desfeita. Desde 2017, alguns dos cursos de mecânicos de automóvel incluem formação para carros híbridos e elétricos.

Segundo seu diretor-geral, Rafael Lucchesi, mais de 90% do portfólio do Senai incorpora as transformações da indústria 4.0 e está sob atualização permanente. De quatro em quatro anos, é elaborado um novo mapa do cenário industrial, de modo a adequar a formação às demandas.

Lucchesi diz que, no lugar de tarefas técnicas e repetitivas surgirão ocupações que exigem competências ligadas a planejamento, negociação e trabalho em equipe.

“No passado, buscávamos a lógica da obediência, o trabalhador tinha que reproduzir de maneira exata o que havia aprendido. Agora, espera-se dele criatividade, capacidade de comunicação e cooperação. Todos os empregos serão transformados, aquele profissional que acha que sabe tudo vai se dar mal”. Lucchesi diz que os cursos serão mais voltados a formar profissionais prontos a resolver problemas.

A reforma do ensino médio, que inclui entre os itinerários possíveis a formação técnica, aponta nessa direção. Abre a possibilidade de maior articulação entre escola e instituições públicas e privadas.

Diante das incertezas sobre a capacidade das redes estaduais de oferecer determinados cursos, parcerias têm sido firmadas, tanto para definir a demanda de cada região quanto para a própria realização dos cursos, que podem envolver institutos federais, autarquias e o Sistema S.

Na Bahia, por exemplo, secretaria de Educação, universidade e produtores elaboram um percurso de educação profissional ligado à cadeia do cacau e do chocolate.

A maior articulação entre os ensinos convencional e profissionalizante é outro aspecto que deve favorecer uma melhor compreensão dos alunos sobre o mundo do trabalho e sua integração a ele
–fundamental no desenvolvimento de habilidades não-cognitivas, na opinião de Ana Inoue.

Inoue é superintendente do Itaú Educação e Trabalho, e acompanha de perto os esforços dos estados em ofertar ensino médio de qualidade e atual, que permita composição curricular entre os cursos técnicos e a formação geral.

A exemplo de um programa na Paraíba, em que os estudantes “vão à comunidade do entorno, identificam problemas, trazem para a escola e depois procuram empresas para pensar em soluções”.

As realidades regionais são muito diversas, o que dificulta a implementação de um modelo único. Segundo Inoue, nem todos os cursos serão oferecidos em todos os estados. Nem poderiam.

“A cultura da ostra, por exemplo, é típica de Santa Catarina, não faria sentido ter um curso ligado a essa cultura em outro lugar. E as entidades públicas e privadas que podem oferecer as formações estão distribuídas de forma desigual no território brasileiro. Cada estado vai ter que encontrar as suas respostas, mas eles têm avançado.”

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