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Rio Bairros

Ensino religioso nas escolas volta a gerar debates na busca pela tolerância

Formas de se combater a intolerância aos que professam uma fé voltaram ao centro dos debates após decisão do STF autorizando o ensino confessional

Rafael Bronz, diretor da área judaica e coordenador de qualidade do Liessen, mostra o Alcorão a estudantes
Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto
Rafael Bronz, diretor da área judaica e coordenador de qualidade do Liessen, mostra o Alcorão a estudantes Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto

Após decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizando o ensino confessional nas escolas públicas e as notícias de ataques cada vez mais violentos a templos de religiões de matriz africana, como os ocorridos à Casa do Mago, no Humaitá, em agosto, a religião e as formas de se combater a intolerância aos que professam uma fé voltaram ao centro dos debates.

Antes mesmo de tais acontecimentos estamparem as manchetes de portais e jornais de todo o país este ano, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) chamou a atenção para a importância de se debater em sala de aula o respeito e a luta contra o preconceito a diferentes crenças. Com o tema “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil” fixado para a redação da prova no ano passado, estudantes de todo o país foram convidados a elaborar um texto com teor propositivo para apontar maneiras de se pensar a questão. E as instituições particulares, religiosas ou não, não ficaram alheias à discussão. Nelas, a opinião de que só a informação é capaz de combater o preconceito e o ódio generalizado é unânime.

Tolerância é a palavra. Trabalhada como valor humano nas escolas, os alunos aprendem que a diferença não é motivo de temor, mas uma oportunidade para aprofundar seus conhecimentos sobre o outro. Esta é a visão da escola judaica Liessin, em Botafogo; do colégio católico Sion, no Cosme Velho; e das instituições laicas Liceu Franco-Brasileiro, em Laranjeiras; e Andrews, no Humaitá.

As formas de abordagem ao tema, no entanto, são feitas de maneira diferente em cada um dos colégios ouvidos. Enquanto o Liessen há dez anos dispõe da matéria Diálogo Inter-religioso e o Sion promove idas a templos de outros credos, Franco-Brasileiro e Andrews preferem falar da questão em disciplinas como História e Geografia, abordando o desenvolvimento cultural das civilizações. Mas a percepção geral é que só o diálogo é capaz de evitar atritos.

Sendo uma das bandeiras do projeto pedagógico do colégio, o Liessin trata do assunto com a naturalidade de um grupo religioso que é minoritário no país e entende a importância de se combater esteriótipos sobre os praticantes de cada crença. No tempo de Diálogo Inter-religioso, dado uma vez por semana e que dura uma hora e 30 minutos, os jovens têm a oportunidade de tirar dúvidas.


Os alunos Alix Marie Lobo e Eduardo Danon leem a Torá
Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto
Os alunos Alix Marie Lobo e Eduardo Danon leem a Torá Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto

— Para nós, discutir as outras religiões é uma via de mão dupla. Como os judeus no Brasil compõem uma pequena parte da sociedade, a nossa proposta ajuda a difundir a cultura, além de evitar o preconceito. Temos uma parceria com o Colégio Santo Inácio em que há este intercâmbio de informações. Ensinamos judaísmo aos alunos deles e eles falam da doutrina cristã aos nossos estudantes. Além disso, convidamos representantes de outras religiões, como a islâmica e as de matrizes africanas, a virem palestrar aqui — explica Rafael Bronz, diretor da área judaica e coordenador de qualidade.

A integração é tamanha que agora a escola leva também dois alunos do Santo Inácio à Marcha para a Vida, evento que ocorre anualmente e que permite que estudantes de todo o mundo viajem à Polônia e a Israel para conhecer a vida judaica antes da Segunda Guerra Mundial e visitar os campos de concentração e de extermínio usados durante o nazismo.

No reforço e na vivência do conhecimento promovido em sala de aula e fora dela, o projeto inter-religioso ganha um caráter interdisciplinar. Uma das pessoas convidadas a falar na instituição foi a jovem Kailane Campos, candomblecista que foi apedrejada após um culto, há dois anos. Além disso, Bronz dá palestras em colégios como Sagrado Coração de Maria, Teresiano e a Escola Suíça.

Alix Marie Lobo e Eduardo Danon, de 18 anos, valorizam a chance que têm de aprender mais sobre os credos.

— É um projeto importante para abrir a cabeça. Eu tinha ideias erradas em relação a outras religiões e hoje as entendo melhor — admite Danon.

— O que complica tudo em qualquer crença é o fundamentalismo. Todas as religiões pregam o amor e o respeito — analisa Alix.

No colégio católico Sion, a compreensão de que o contato com outros credos acrescenta à formação humana é compartilhada. A irmã Vaneide Chagas, diretora-geral e coordenadora de pastoral e do ensino religioso, explica que a cada bimestre uma fé é estudada entre os alunos, que têm a oportunidade de fazer intercâmbio de informações com a Eliezer Max, escola judaica próxima à instituição. Afinal, os fundadores do Sion tinham origem judia.


A irmã Vaneide Chagas, diretora-geral de pastoral e ensino religioso do Sion, junto com os alunos
Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto
A irmã Vaneide Chagas, diretora-geral de pastoral e ensino religioso do Sion, junto com os alunos Foto: Agência O Globo / Márcia Foletto

— A congregação de Nossa Senhora de Sion é conhecida por ser a promotora do diálogo junto ao Vaticano. A intolerância é resultado da falta de conhecimento. Os alunos de outras religiões que aqui estudam têm a chance de trazer objetos de suas crenças, além de explicá-las aos colegas. Também convidamos religiosos de outros credos para dar palestras. E levamos os alunos a conhecer os templos deles — diz Vaneide, que lembra que, em 2016, teve de cancelar a visita de muçulmanos ao colégio porque a mesquita convidada estava sofrendo ataques agressivos.

Segundo a irmã, não existe resistência dos pais.

— Assim que matriculam os filhos aqui, são avisados de que promovemos essas conversas. Nosso projeto pedagógico é pautado na vivência do aluno em sociedade, desde pequeno. Queremos um diálogo ecumênico também entre as igrejas cristãs, como a presbiteriana e a batista. Toda a educação aqui é pautada em quatro pilares: acolhimento, diálogo, escuta e atitude de discípulo — diz ela.

Pontos de vista são discutidos

É no debate de assuntos polêmicos como legalização do aborto e uso de pílula anticoncepcional que os diferentes pontos de vista vêm à tona, embasados ou não na crença religiosa dos alunos no Colégio Liceu Franco-Brasileiro. A instituição, laica, aborda a fé e sua influência na Humanidade nas aulas de Geografia (ministradas pelo professor Diomário da Silva Junior), História, Literatura e Sociologia, sempre dentro do contexto da matéria discutida, e orgulha-se de ter alunos de diversos credos em classe.

— Trabalhamos a formação do aluno em cima de valores e princípios, independentemente da religião. Mas existem algumas discussões que não há como não abordarmos em sala de aula porque o aluno não pode ficar alienado em relação ao que acontece e é discutido no mundo. Nós os munimos de informação para que eles tenham um bom embasamento ao formarem sua opinião, que terá motivação religiosa ou não, de acordo com a cabeça de cada um — conta a orientadora educacional da escola, Kátia Abrantes.

O Colégio Andrews, instituição centenária igualmente laica, lembra que sua vocação para a tolerância esteve presente desde a fundação, sendo o lugar que oferecia turmas mistas de homens e mulheres quando a regra era separar os gêneros. Também recebeu de braços abertos as famílias que tinham casos de divórcio quando o assunto ainda era um tabu e matrículas eram rejeitadas com embasamento no que acontecia no terreno particular. E lá encontraram acolhida as famílias judias no início do século passado, sem que livros sagrados permeassem o ensino.

Diretor do Andrews, Pedro Flexa Ribeiro defende que a lacaidade deve se manter íntegra nos ensinamentos passados às crianças.

— Temos a experiência de uma escola que nasceu laica e sempre favoreceu o convívio e o respeito de famílias de diferentes credos. Na matéria de História, por exemplo, o antigo testamento é posto em pauta estritamente no viés histórico e arqueológico, e dado com tanta ênfase quanto a reforma religiosa no Egito e as mitologias gregas e da América pré-colombiana. O enfoque é pelo lado cultural — diz Ribeiro.

Por isso, ele vê com ressalvas a decisão do STF que autorizou o ensino confessional na rede pública.

— Fico preocupado ao pensar na formação deste professor, no bloco de conteúdos passados e em como vai funcionar a avaliação da disciplina. Não sei se o educador será tão indiferente ao discorrer sobre um credo. Uma ótica religiosa tende a ser passada com certa paixão — acredita Ribeiro.

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