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Covid-19

Enem fora de hora

“Você que tá ai, eu sei que o coronavírus atrapalha um pouco. Mas atrapalha todo mundo. Como é uma competição, tá justo.” Foi assim, com esse argumento simplório e equivocado, que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciou na semana passada que o Enem seria aplicado nos meses de outubro e novembro.

 


 

A frase - mais um desatino para a coleção do ministro - revela tanto desconhecimento quanto insensibilidade. Nem seria preciso revisar a literatura acadêmica em desigualdades educacionais para constatar que a suspensão das aulas devido ao coronavírus terá impactos muito distintos em estudantes das redes pública e privada.

A pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação em domicílios brasileiros (TIC), realizada anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, mostra que apenas 9% das residências de famílias das classes D e E possuem computador. Esse percentual vai subindo gradativamente até chegar ao patamar de 98% na classe A.

Graças principalmente aos telefones celulares, a desigualdade no acesso a Internet é um pouco menos intensa, mas ainda assim brutal: nas classes D e E, é de apenas 40% o percentual de domicílios conectados à rede, percentual que chega a 99% na classe A.

Falta de acesso adequado às tecnologias mais eficientes para a educação a distância não é o único problema. Sabemos pelos dados do IBGE que quanto menor a renda da família, maior o número de pessoas habitando na mesma residência. Em lares de maior renda no Brasil, nas duas últimas semanas tem virado rotina ver as crianças irem para seus quartos individuais para assistir pelo computador aulas online de seus professores de escolas particulares. Para os estudantes mais pobres de rede pública, esta é uma cena inimaginável.

Isso sem falar de outra grande desvantagem, já bastante citada nesta coluna: é consenso na avaliação educacional que o fator que mais impacta o aprendizado dos alunos é o nível socioeconômico das famílias. Num momento em que os pais terão papel ainda mais importante na orientação dos estudos dos filhos em casa, é de se esperar que esse impacto seja ainda maior. Essa, aliás, é uma das explicações de um fenômeno que abordei neste espaço há duas semanas: o “summer gap”, ou a constatação de que, no período de férias, a perda de aprendizagem verificada entre filhos de pais menos escolarizados é muito mais intensa.

Mesmo os mais entusiastas defensores do ensino a distância no atual contexto admitem que o prejuízo será muito mais intenso para os alunos mais pobres, que frequentam escolas públicas. Essa é a preocupação, por exemplo, dos secretários estaduais de educação, que divulgaram uma nota pública criticando o MEC por anunciar as datas do Enem sem consultá-los num momento tão crítico.

O Enem, mesmo em situações normais, já não é uma competição plenamente justa. Para que a seleção daqueles que irão para a universidade fosse feita com base apenas no mérito e esforço pessoal, teríamos que dar igualdade de oportunidades a todos, algo que estamos infinitamente longe no Brasil. A crise atual só agrava esse quadro.

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