O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) registrou um índice de 32,4% de abstenção. Com isso, essa edição da prova teve 2.351.513 candidatos presentes dos 3.476.226 inscritos, segundo dados do dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que realiza o exame.
Essa é a mais alta taxa de abstenção dos últimos seis anos, desconsiderando a edição de de 2020, realizado durante a pandemia de Covid-19, quando 55,3% dos inscritos não participaram. O número final de participantes também bateu recordes negativos: só em 2021, quando 2,2 milhões fizeram o exame, houve menos candidatos do que neste ano.
Em entrevista coletiva na manhã desta segunda-feira, o ministro da Educação, Victor Godoy, minimizou os dados e afirmou que a pandemia "certamente tem um efeito na redução do número de inscritos". No entanto, sem apresentar provas ou indícios, levantou suspeitas sobre o número de participantes de anos anteriores.
De acordo com ele, a Controladoria-geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) investigam a ocorrência de supostos números inflados de participantes em edições passadas. Godoy não deu detalhes sobre a apuração que, segundo ele, está sob sigilo. Procurado, o TCU informou que não localizou processo que trate desse objeto especificamente. A CGU não respondeu.
– Vamos lembrar que todo ano formam-se em média 2 milhões de alunos no ensino médio, segundo dados do Censo de 2021. E tivemos neste ano 3,4 milhões de inscritos e 2,4 milhões de participantes efetivos, que fizeram a prova . O número de participantes supera o número de estudantes que finalizam o ensino médio – justificou o ministro da Educação, Victor Godoy.
Como O GLOBO mostrou, a queda no número de participantes do Enem é uma das preocupações do grupo da transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. A visão é de que o governo de Jair Bolsonaro esvaziou o exame.
Histórico de crise
De acordo com ele, a queda no número de participantes não foi decorrente da atuação do instituto. Durante o governo de Jair Bolsonaro o Inep viveu sua maior crise institucional desde sua criação. No ano passado, às vésperas do Enem, quase 40 servidores pediram exoneração de seus cargos de coordenação com denúncias ao ex-presidente do órgão Danilo Dupas. Na coletiva de imprensa, o ministro da educação fez uma "menção elogiosa" a Dupas.
– O elogio ao ex-presidente Danilo foi porque ele fez realmente uma gestão de melhoria significativa da governança do instituto. Inclusive tendo identificado várias situações que foram encaminhadas para apuração e investigação da CGU e do TCU, uma delas o próprio número de participantes do Enem, que tem uma investigação em curso de possibilidade de números inflados de inscritos no Exame. Isso está em apuração pela CGU e pelo TCU, pode ser uma das razões que explique essa redução (no número de participantes) também – afirmou Godoy.
O ministro não quis detalhar quais edições do Exame estariam sob apuração da CGU e do TCU em relação ao número de inscritos.
– Foram levantados alguns indícios de manipulação das inscrições, de inscrições infladas nas bases do Inep. Isso foi tudo encaminhado para os órgãos de controle para apuração – disse.
O GLOBO apurou que a análise prévia da CGU teria cruzado dados das inscrições com outras bases do governo e apontado que o Inep teria concedido isenções de taxa para candidatos que supostamente não teriam direito. Uma nota técnica elaborada pelos servidores da Diretoria de Gestão e Planejamento (DGP), no entanto, rebateu as supostas irregularidades apontadas. O diretor da área, Jôfran Lima Roseno, não acatou os argumentos. Em um documento de junho deste ano ele afirmou que ainda que a nota tenha trazido "algumas explicações plausíveis" não foi capaz de " afastar por completo o indicativo de fraude, por limitação de acesso às informações necessárias." Por fim, o diretor afirmou que " a elucidação dos fatos requer isenção, imparcialidade e o emprego de técnicas e procedimentos não disponíveis na estrutura regimental desta DGP."
Servidores ouvidos pelo GLOBO em condição de anonimato afirmaram que a apuração foi uma "teoria" do ex-presidente do Inep, Danilo Dupas. Os técnicos levantam a suspeita de que a medida foi uma tentativa do ex-presidente de promover uma "caça às bruxas" no órgão.
Em nota, o Inep confirmou que houve representações junto a CGU e ao TCU para apuração de possíveis irregularidades nas inscrições do Enem, conforme informado pelo ministro da Educação, Victor Godoy, em coletiva de imprensa realizada nesta segunda-feira, 21 de novembro. "A Autarquia está à disposição para prestar todos os esclarecimentos necessários nos autos dos processos, que estão em averiguação pelos órgãos de controle", diz o texto.
A reportagem questionou o MEC, mas não obteve resposta. A CGU, o TCU e a Polícia Federal também não responderam.
Ex-presidente do Inep entre durante os exames de 2014 e 2015, o educador Chico Soares afirma que as acusações sobre números inflados não fazem sentido. Segundo ele, caso houvesse fraude nas inscrições os percentuais de abstenção verificados ano a ano seriam totalmente fora da normalidade, já que a razão entre o número de inscritos e o número de presentes seria muito maior.
— Houve um momento em que o estudante da escola pública não fazia o Enem por vários motivos, houve um esforço grande em estados para levar esse aluno a fazer a prova. Basta verificar quantos não compareceram ao longo dos anos e ver que esse percentual ficou razoavelmente estável. Se houvesse inflagem de números, esses alunos não teriam aparecido para fazer a prova. O que vivi à frente do Inep era uma coisa saudável de dizer para os estudantes: você também pode. Houve esse esforço de aumentar o número de alunos que fizerem o Enem para que percebessem a universidade como possibilidade — explicou Soares.
Interferência
Principal porta de entrada do ensino superior, o Enem passou por percalços nas três primeiras edições feitas sob o governo de Jair Bolsonaro. Neste ano, com o servidor de carreira o Inep Carlos Moreno no comando do instituto, a prova ocorreu sem falhas.
Desde o início do governo Bolsonaro o Enem foi alvo e tentativas de interferência no conteúdo da prova. O GLOBO mostrou que uma comissão criada no primeiro ano de governo sugeriu a troca do termo "ditadura" por "regime militar". O grupo "desaconselhou" o uso de 66 questões na prova. A comissão acabou sendo desmontada pelo próprio governo, mas em 2021 o jornal "Folha de S. Paulo" revelou nova portaria do Inep para tentar estabelecer um "tribunal ideológico" a respeito das questões que compunham as avaliações do instituto. O mecanismo também não prosperou.
Neste ano, o Enem trouxe como tema da redação os "Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil". A escolha foi aplaudida por educadores que chamaram atenção para o protagonismo dos servidores do Inep em conseguir manter o padrão do exame apesar das investidas do governo.
Questionado sobre as interferências no Enem, o ministro a Educação afirmou que não conversou com o presidente sobre a prova e que tem total autonomia para gerir o MEC. Segundo ele, a preocupação de Bolsonaro era apenas de que o Enem servisse para avaliar estudantes em termos de conhecimento e não como um filtro ideológico.