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Empresas investem em ambiente de trabalho para pais de crianças em primeira infância

Preocupação faz com que companhias se tornem mais atraentes na recrutação de talentos e tenham a reputação elevada no mercado
Painel discutiu temas como poder multiplicador das empresas, que ultrapassa a relação com os funcionários e benefícios Foto: Sylvia Gosztonyi
Painel discutiu temas como poder multiplicador das empresas, que ultrapassa a relação com os funcionários e benefícios Foto: Sylvia Gosztonyi

SÃO PAULO — Crianças vivem uma explosão de desenvolvimento até os seis anos de idade. É o auge da atividade cerebral , com um milhão de conexões por segundo e potencial gigantesco para o aprendizado. Além de essa fase ser crucial no crescimento de meninas e meninos, o investimento na chamada primeira infância é, também, uma missão de empresas .

São elas, afinal, as responsáveis por criar um bom ambiente de trabalho para mães e pais em seus quadros — e, assim, ajudar a transformar a sociedade. No dia a dia, é uma preocupação que se revela positiva não apenas para funcionários e sociedade em geral, mas também para as próprias empresas, que se tornam mais atraentes na hora de recrutar talentos e têm a reputação elevada no mercado.

O tema guiou o evento “Empresas pela primeira infância”, realizado ontem no Rooftop 5, em São Paulo. A iniciativa foi do GLOBO e da revista Crescer, com apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e parceria da Globo e da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-Brasil).

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Divididos em duas rodadas de conversa, especialistas e diretores de RH discutiram a importância da atenção às crianças até os seis anos e da elaboração de políticas e medidas práticas direcionadas a elas.

O universo das crianças foi abordado no painel “Primeira infância e o cidadão do amanhã”, que mostrou como as oportunidades e experiências no início da vida impactam o futuro delas. Participaram dessa conversa o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, o pediatra Daniel Becker e a diretora de Comunicação da Fundação, Paula Perim. A mediação foi de Daniela Tófoli, diretora editorial da Crescer.

Já no segundo painel, “Desafios, iniciativas e boas práticas”, executivos compartilharam experiências adotadas em suas companhias com o foco em mães e pais. Foram eles: Veronika Falconer, diretora executiva de RH da Takeda; Flávia Caroni, diretora de RH da Whirlpool; e Guilherme Rhinow, diretor de RH da Johnson & Johnson. A conversa foi mediada por Maria Fernanda Delmas, editora executiva do GLOBO.

A CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Mariana Luz, fez um chamado a uma participação mais ativa das empresas nessa causa. O apelo foi reforçado pela diretora de Responsabilidade Social da Globo, Beatriz Azeredo, que lembrou que a primeira infância foi o tema escolhido para o “Caderno Globo”, publicação lançada no início do mês. Já o presidente da ABRH-Brasil, Paulo Sardinha, anunciou que a associação vai incluir na pauta de ação a promoção do desenvolvimento da primeira infância. A apresentação do evento foi da jornalista Petria Chaves, da CBN.

A seguir, os principais pontos do encontro:

O mito do ‘tempo de qualidade’

Usado para diminuir a culpa dos pais no (pouco) tempo que passam com os filhos, o chamado tempo de qualidade “é uma falácia”, acredita o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral. Ele citou uma pesquisa feita na Europa após a Segunda Guerra que estudou os efeitos da privação materna no desenvolvimento de bebês que ficaram órfãos. A conclusão foi que duas questões precisam ser construídas na relação com a primeira infância: quantidade, ou seja, a disponibilidade mostrada à criança, e a qualidade, essencial para criar intimidade.

— Os bebês se conectam com nosso esforço. Na hora em que paramos para acalmar aquela cólica desesperadora, e que atire a primeira placenta quem nunca viveu isso, os bebês se conectam com essa tentativa. Não com o sentido de eficácia, que nos persegue, mas com a disponibilidade de estar ao lado —diz Amaral.

Ele lembrou o psicólogo Andrew Solomon, que afirmou que maternidade e paternidade são o encontro com um “estranho íntimo”:

— Esquecemos a importância da conexão com as crianças. Elas continuam nosso processo de desenvolvimento e recuperam o pedaço da nossa alma carcomido pela velocidade da vida.

Parentalidade distraída

Nessa pouca disponibilidade de tempo, o celular também pode ser vilão. A “hipnose” das telas (pelos adultos) virou alvo de estudo entre especialistas, que chamam o fenômeno de “parentalidade distraída” .

— Somos sugados para dentro desses aparelhinhos. Achamos que estamos interagindo com a criança, quando estamos em outro lugar — diz o pediatra Daniel Becker.

Segundo ele, as distrações nessas interações causam efeitos no desenvolvimento na primeira infância:

— Estudos já mostram crianças com baixa qualidade de vínculo, problemas comportamentais e de autoestima. Os pais mal conseguem perceber a presença da criança.

‘Pré-distribuição de renda’

Para além da relação entre pais e filhos, investir na primeira infância é a forma mais eficaz de reduzir a desigualdade social. É uma “pré-distribuição de renda”, diz Becker.

—Traz resultados para indivíduos e sociedade em capacidade de aprendizado, empregabilidade, produtividade, bem-estar físico e mental, de capacidade como cidadão. E ,quanto antes, melhores os resultados.

A atenção, acrescenta o pediatra, evita ter que redistribuir renda, fazer Bolsa Família, construir prisões ou gastar com tratamentos de doenças crônicas.

Estresse tóxico

Outro problema é a violência, muitas vezes subestimada no efeito sobre crianças.

— Não pode ser normal uma criança deixar de ir à escola por causa de tiroteio — explica Becker.

Além de medo, desigualdade e alijamento dos pais, contribuem para o estresse de crianças a hiperconexão, a privação de boa alimentação e a “adultização” precoce. Os números de crianças pensando em suicídio também preocupam.

—A ideia de felicidade e saúde de uma criança ainda é associada a brincar na natureza. São as essências do bem-estar da criança e que podem levá-la a ser um adulto feliz e menos deprimido — diz Becker.

Olhar para a mãe

Qual é a responsabilidade social do olhar para um filho? É olhar para a sociedade como um todo. Paula Perim, diretora de Comunicação da Fundação, lembrou o provérbio africano que diz que “para criar uma criança é preciso uma vila inteira”:

—Tem o vizinho que faz parte de rede de apoio, a família, a escola, o hospital, o posto de saúde. E as empresas. Passamos grande parte do tempo trabalhando. E existe a responsabilidade das empresas com os funcionários e a oferta de benefícios.

Em vez de ser excluída do mercado de trabalho ao virar mãe, a mulher deveria ser reconhecida nas habilidades que adquire com a maternidade.

— Empregar uma mãe significa empregar uma pessoa que está no processo de desenvolvimento de habilidades e competências de alto nível de complexidade de gestão, da rotina, do lar, do cuidado, de solução de conflitos — acrescenta Amaral.

Segundo ele, mãe exausta para cuidar do filho é uma mãe pouco amparada:

— Quantas vezes já viram aquela mãe desesperada na pracinha, com um comportamento do filho que ela não consegue gerenciar? E quantas vezes a gente julga, e não apoia?

Efeito multiplicador e mudança de cultura

Nessa mudança de consciência, as empresas têm um poder multiplicador, que ultrapassa a relação com os funcionários e benefícios.

— Também tem a ver com a influência que elas podem ter nas políticas públicas, de como fazem marketing, falam no tema, se comunicam. E de como elas olham para outras empresas. Existe um leque gigante de atuação — afirma Paula Perim, diretora de Comunicação da Fundação.

A mudança de cultura é essencial nas empresas, assim como gerar empatia para o tema no ambiente de trabalho. Para romper paradigmas sociais, é preciso replicar histórias de sucesso, afirma Guilherme Rhinow, da Johnson&Johnson.

Segundo Veronika Falconer, diretora de RH da farmacêutica Takeda, a abordagem segue um processo:

— Muitas vezes vemos algo (no mercado), mandamos para os diretores, fazemos a provocação, alguém sugere fazer um piloto.

A executiva explica que uma boa medida é celebrar os benefícios na companhia e no mercado. E como calibrar a cobrança pelos resultados dos funcionários? Faz parte do papel da empresa gerar ambiente de confiança e alinhar expectativas para que os funcionários entreguem resultados com flexibilidade de horários.

Mariana Luz resumiu o potencial desse investimento, pois o melhor modelo para as empresas é ter investimento baixo, retorno alto e impacto grande.

— E é isso que a primeira infância oferece. O mundo corporativo precisa ser alavanca para que o tema se impulsione e se traduza em projetos e políticas para essas crianças.