Jean Alves, de 17 anos, é aluno do primeiro ano do Ensino Médio e autor de um dos poemas selecionados no livro Foto: ANTONIO SCORZA / O Globo

Em escola vizinha à Rocinha, poesia combate desesperança

Versos de alunos do Colégio Estadual André Maurois viram livro em tom de desabafo

por Carina Bacelar

“Quero brotar em Pasárgada, lá eu posso acordar/Ir tranquilo para a escola sem medo de um tiro tomar”, escreveu Rafael Barroso, aluno da Escola Estadual André Maurois, na Gávea. E prossegue: “Lá eu posso ser negro em paz/E com bandido ser comparado? Jamais!”. Para ele e seus colegas de colégio, a Pasárgada, paraíso inatingível eternizado na poesia de Manuel Bandeira, é apenas um lugar a salvo de balas perdidas. Ser “amigo do Rei” nem é tão importante. Rafael batizou seu poema de “Liberdade”. A poesia está publicada — com mais 45 criações de outros alunos do colégio — num livro lançado esta semana, durante o festival literário da escola. Enquanto esses jovens de 15 a 18 anos do ensino médio criavam rimas para as suas obras, a Rocinha, onde a maior parte deles mora, vivia uma guerra entre facções que chegou a suspender as aulas da escola por mais de duas semanas. Uma violência que não tem fim. Por isso, os professores não têm dúvida: embora singelo, o livro é, mais do que uma demonstração de criatividade, um ato de resistência.

Literatura e 'catarse'

Cintia Barreto e os estudantes, professores e ex-alunos da escola estadual que se reuniram para montar o festival literário - Carina Bacelar / O Globo

Há poemas sobre amores, os dilemas de ser jovem, as belezas das praias do Rio. Mas boa parte deles passa pela dor de estar numa rotina violenta. Ao menos 17 textos tratam deste assunto e da falta de perspectivas dentro da sociedade. “Os tiros vão para todo lado/Os moradores não saem mais de casa/E a cidade?/PARA!”, é o apelo em forma de estrofe que o aluno Pedro da Silva faz. “Em meio à violência/Permaneci/O que resta é só saudade/Dos dias de paz que vivi”, desabafa, por sua vez, outra estudante, Ana Beatriz da Silva.

— Este ano, o tema proposto foi o jovem e a cidade — conta Cintia Barreto, professora do colégio, organizadora e curadora da Festa Literária da André Maurois (FLAM) e também do livro de poesias. — Infelizmente, nossos jovens têm sofrido com esses problemas sociais, com a violência urbana. A gente queria escutar essa voz, saber de que forma eles estavam processando essa cidade.

A escola respira cultura. Logo na entrada, por exemplo, alunos montaram um retrato de Martin Luther King Jr. só com peças de dominó. Mas, por um tempo, essa efervescência ficou suspensa. Após esse hiato de duas semanas sem aulas por causa da violência, Cintia notou os jovens mais cabisbaixos. Agora, para ela, a hora é de mostrar que há talentos e potenciais a serem revelados na Rocinha, no Vidigal e em tantas outras favelas onde moram os alunos do colégio:

— Essa festa de hoje (ontem) é uma catarse. A gente sabe que o problema urbano não está resolvido. Mas queremos que eles vivenciem outras experiências, que transformem dor em arte.

Um dos autores dos poemas selecionados para o livro é Jean Alves, de 17 anos. Ele, que mora na Rocinha com a mãe, optou por escrever um texto sobre um tema feliz: o eu-lírico, que aproveita um dia de praia com a namorada. Animou-se a tal ponto que já pensa em cursar Letras:

— Sabia que muita gente já ia falar sobre violência. É algo com o qual sofremos, mas não temos culpa — diz ele, explicando sua escolha. — Quando a escola fechou, senti falta. Participo de todas as atividades extraclasses. Aqui, a gente conhece coisas que não conheceria.

Livro de poemas dos 'poetas do Maurois' - Carina Bacelar / O Globo

Há alguns meses, uma aluna de 16 anos foi atingida por uma bala perdida em casa. Desde então, não tem ido à escola por causa do tratamento. A diretora Elizabeth Ramos, que mais parece uma faz-tudo dentro do colégio, garantiu à mãe da adolescente que a fará de tudo para a jovem não perder o ano letivo. Na linha de frente da Festa Literária, Elizabeth já doou uma coleção de livros para um ponto de leitura dentro do colégio e deu o dinheiro para pagar o Uber que levará a autora (e moradora da Rocinha) Fabiana Escobar, a Bibi Perigosa, ao evento hoje na escola.

— Para a gente, é um alento fechar o ano com essa prova de resistência. A gente acredita que a literatura pode mudar a realidade deles — afirma. — Era para ficarmos totalmente desanimados, mas a gente tem amor pela escola.

O festival de literatura é uma espécie de força-tarefa dos professores, estudantes e ex-alunos, que voltaram à escola para ajudar a organizar o evento. O livro escrito pelos jovens chama-se “Poetas da Maurois", uma referência ao nome da escola, batizada em homenagem ao escritor francês André Maurois. É dele a frase “O homem de ação é, antes de tudo, um poeta”.

O GLOBO publica, a seguir, alguns dos poemas do livro:

'A cidade para'
por Pedro da Silva*

Casa perfurada por tiros na comunidade da Rocinha - ANTONIO SCORZA / O Globo

Essa cidade é tão quente

Não sei para onde ir

Quando vou ao baile

A cidade me chama

Para dar uma volta.

E, quando saio,

Só vejo polícia

Correndo para todo lado

E esta polícia me para

Só porque sou “do morrão”.

Eles param as crianças

E elas ficam assustadas

Com a violência da cidade que não para.

Os tiros vão para todo lado

Os moradores não saem mais de casa

E a cidade?

PARA!

* Pedro da Silva é aluno da Escola Estadual André Maurois

'Amizade'
por Igor Lima*

Jovens vão para a escola na Rua Dois, na Favela da Rocinha - ANTONIO SCORZA / O Globo

A amizade é necessária

Para qualquer ser humano

Pena existir a ilusão na utilidade

Acabam achando que amizade

Só se cultiva quando é preciso

Depois é jogada fora.

Amizade de verdade

Seria estar do lado

Nos altos e baixos

Na alegria e na tristeza

Para todo sempre.

*Igor Lima é aluno da Escola Estadual André Maurois

'Compreensão do menino'
por Itallo Santos*

Dia chuvoso na entrada da comunidade - Antonio Scorza / O Globo

Quando jovem

A cidade era pequena

Pequeno eu também era.

Minha mãe explicou

Que quando eu fosse mais velho

A visão da cidade grande

Iria surgir em minha mente

E eu iria compreender melhor

O que acontece na minha frente.

Pois há coisas boas e ruins

A qual podemos desfrutar melhor

Se tivermos uma compreensão aflorada

Do que está em nossa volta.

*Itallo Santos é aluno da Escola Estadual André Maurois

'Devastador'
por Gustavo Wellington*

Rio de Janeiro 26/10/2017 Tiroteio acontece na Rocinha menos de 24 horas após menina ser baleada na barriga. Foto Antônio Scorza / Agência O Globo - Antonio Scorza / Agência O Globo

O mundo está assim

Estranho

Amargo

Inerte.

As cidades sendo destruídas

O mundo se acabando

Violência em todo lugar

Corre perigo de tudo acabar.

Aqui hoje

Só existe guerra

Todo mundo se acaba

Nessa terra.

*Gustavo Wellington é aluno da Escola Estadual André Maurois

'Em uma cidade'
por Letícia Braga*

Orla do Rio vista do Vidigal - Renata Brito / AP

Andando pela cidade

Vejo muita desigualdade

Alguns jovens se consomem

Enquanto outros passam fome.

Em uma cidade triste

Jovens ruins não existem

A alegria está em viver

Florescendo a cada amanhecer.

Vivendo do jeito que for

Tentando esquecer a dor

A cidade amanhece feliz

Do jeito que eu sempre quis

*Letícia Braga é aluna da Escola Estadual André Maurois

'A Liberdade'
por Rafael Monteiro Barroso*

Mensagem pede paz na comunidade da Rocinha - Antonio Scorza / O Globo

Às vezes, imagino como seria se eu fosse livre

Aquele menor alimentado a fé que sorrindo vide

Nos meus versos componho os sonhos, mas a realidade é triste

E vivo num mundo onde a felicidade infelizmente não existe

E vou meter meu pé, irei onde Deus quiser,

sem pensar qual é,

e pode vir quem quiser

Quero brotar em Pasárgada, lá eu posso acordar

Ir tranquilo para a escola sem medo de um tiro tomar

Lá eu posso ser negro em paz

E com bandido ser comparado? Jamais!

Lá não existe crianças de rua, lá existe a oportunidade

Aquela amiga injusta, que para os de gravata é infelicidade

Em Pasárgada arregaria,

tem comida todo dia,

lá existe a alegria, o amor e a harmonia

Aqui eu não encontro a paz, aqui eu encontro a derrota

Fantasiada de dor e no fundo uma cova

Eu olho para a realidade e me pergunto “como estamos?”

Várias coisas tiram o brilho do que conquistamos

A angústia pior que a de Graciliano Ramos,

olhando a polícia matar criança de dez anos

Não quero ficar aqui, vou meter o pé para Pasárgada

Lá a munição são os argumentos e o livro, a arma

Lá tem muito dinheiro de segunda à sexta feira

Honestamente conquistado e sem nenhuma bobeira

Pasárgada prega a paz,

Pasárgada é demais,

se tu não conhece, chega mais

tudo de bom a gente faz

Lá eu escolho minha religião, sem medo de opressão,

sem medo de levar um tiro de canhão

Lá eu posso entra num shopping sem medo de ser seguido

era realmente em Pasárgada que eu queria ter nascido

A fé move montanhas,

a boca de aratanha,

a liberdade lá se ganha,

pique caju e castanha

Lá eu grito com orgulho,

negro que brilha no escuro,

racista lá não entra que eu perturbo

Não quero estar aqui,

a realidade faz mal para mim,

lá em Pasárgada não é assim, lá tem flores brancas de marfim

Como eu poderei sonhar,

como poderei imaginar,

sem em Pasárgada estar,

é uma prisão perpendicular

Me sinto detento de uma realidade,

que foi construída pela maldade,

sem direito à verdade,

um padrão da sociedade

Quero ir para Pasárgada

lá eu não viro estatística,

por parecer bandido independente do que eu vista

E quando a maligna realidade passar no meu pensamento,

vou embora para Pasárgada

lá eu tenho meu argumento

Lá eu tenho a minha voz,

lá eu tenho minha serenidade,

eu vou indo para Pasárgada abraçar minha realidade

* Rafael Monteiro Barroso é aluno da Escola Estadual André Maurois

"O Jovem e a cidade"
por Ana Beatriz da Silva Moreira *

Moradores pedem Paz na Rocinha - Gabriel de Paiva / O Globo

Nasci no meio da multidão

Ó, Rio de Janeiro

O sol a brilhar no meio da imensidão

Provei da alegria, provei do amor

Provei da solidão

O tempo passou

E nem percebi

Perdi amigos e nem por isso parti

Em meio a violência

Permaneci

O que resta é só saudade

Dos dias de paz que vivi

Por mais que eu tente escapar

A violência por todo lado

Irá estar

Vou tentando fazer o que sonhei

Onde há violência e racismo

Contra negros e gays

A destruição da cidade

Não é o desmatamento, nem a poluição

Parei para pensar e fiquei raciocinando

O que destrói na verdade

É o ser humano.

*Ana Beatriz da Silva Moreira é aluna da Escola Estadual André Maurois

Sem nome
por Rafael de Oliveira*

Jovens na saída da prova do Enem deste ano - Paulo Pinto / O Globo

A cidade é um lugar cheio de pessoas

Mas basta um jovem precisar de ajuda

Que ... some!

Todo mundo parece que some!

E como vou crescer bem?

Se não tenho apoio de ninguém

Vai ser difícil prosseguir...

Mas com muita fé em Deus

Eu vou conseguir!

O medo vai tentar me impedir,

Mal sabe ele

Que eu não penso em desistir

* Rafael de Oliveira é aluno da Escola Estadual André Maurois

Sem nome
por Vitor Pereira*

Dia nublado na praia de Copacabana - Márcia Foletto / O Globo

Andando no relento

Entre o frio e o vento

Caminhando calado

Coração angustiado.

Lá no fundo uma tristeza

E sem saber o que fazer

Não vou correr atrás da vida

Não dá mais tempo de viver.

*Vitor Pereira é aluno da Escola Estadual André Maurois