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Em busca de identidade, professora trans teve jornada que envolveu ação judicial, vaquinha e solidão

Danieli Balbi é doutora em ciência da literatura e já deu aulas na UFRJ; ela defende políticas públicas de apoio aos transgêneros

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São Paulo

Contrariando estimativas educacionais desfavoráveis e os gargalos de políticas públicas para a população trans, Danieli Christovão Balbi, 32, concluiu mestrado e doutorado em ciência da literatura, títulos que a alçaram ao cargo de primeira docente trans da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde atuou durante dois anos.

Até julho do ano passado, ela foi professora substituta na disciplina de comunicação e realidade brasileira na ECO (Escola de Comunicação Social) da UFRJ. Hoje, ela, que é professora concursada da rede estadual do Rio, está licenciada do cargo, e atua na Comissão da Mulher na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Também é dramaturga e roteirista.

Mas a afirmação de gênero da professora passou por enfrentamentos em diversas áreas, começando pela saúde. Danieli se deparou, no atendimento básico, com profissionais desinformados sobre os procedimentos os quais o público trans tem direito. Ela relata, ainda, ter sofrido preconceito ao tentar realizar a cirurgia pelo SUS.

"Precisei acionar a Secretaria de Saúde. Então foi um processo pedagógico até para os funcionários do posto de saúde. Portanto, apesar de termos conseguido muitas coisas, ainda há um longo caminho."

Danieli conta que no posto de saúde, uma enfermeira tentou demovê-la da ideia de fazer o procedimento médico porque seria, segundo a profissional, uma "mutilação".

A professora explica que já estava fazendo acompanhamento psicológico e com endocrinologista, para a hormonização, na rede pública.

"Durante a minha vida sofri pequenas transfobias, aquelas cotidianas, muitas em relação ao pronome. Na transição entre o mestrado e o doutorado tive depressão e, com o incentivo de amigos, decidi iniciar esse processo, pois a minha disforia de gênero era intensa".

Em 2016, ela enfim entrou em centro cirúrgico para realizar o procedimento de redesignação sexual. Não tinha mais condições emocionais para esperar na fila do SUS pela cirurgia, determinante para seu bem-estar. Contou com ajuda de uma vaquinha com doações de amigos, alunos e familiares.

Ainda assim, ela precisou recorrer a empréstimos para obter o total necessário, mais de R$ 40 mil, na época. "No ano da cirurgia, vivia apenas com a bolsa do doutorado em ciência da literatura", relata ela, que defendeu tese sobre teatro épico.

Rio de Janeiro (RJ) - A professora Danieli Balbi passou por uma cirurgia de redesignação sexual com o apoio de amigos. - Ricardo Borges/Folhapress

"Sempre fui a Dani, participava do conselho universitário, tinha voz ativa, mas signos como a vestimenta e a documentação não me acompanhavam. Até a graduação, eu adotava um visual andrógino."

Até então, ela não havia feito a mudança no registro civil. A professora explica que, no final de 2015, entrou com pedido judicial para mudança de nome e de gênero em seus documentos, mas a juíza concedeu apenas a alteração do nome, alegando que o gênero não poderia ser mudado, uma vez que ela não tinha feito a redesignação.

"No final de 2017, ganhei a ação em segunda instância e, poucos dias depois, o STF [Supremo Tribunal Federal] julgou favoravelmente pela desburocratização para todos. A partir daí, a pessoa vai ao cartório e se declara transexual, o cartório tem a obrigação de emitir uma nova certidão com o gênero e nome que a pessoa se define."

A amiga de Danieli, Tainá Turri, conta que, na época da cirurgia, moravam em uma república e que Danieli não comentava muito sobre o assunto.

"Ela fez tudo sozinha. Praticamente soube que ela faria o procedimento no dia. Naquele momento, não tinha ideia da dimensão do que tudo isso significava e da solidão que todo esse processo deve ter sido para ela."

Danieli também recebeu doações de amigos e de professores da UFRJ para realizar a cirurgia. "A Dani não comentou nada com a gente, mas ficamos sabendo da vaquinha pelas redes sociais e resolvemos apoia-la com uma rifa. A intenção foi envolver toda a escola", diz o estudante de biomedicina Paulo Nunes, 22, um dos alunos do Colégio de Aplicação da UFRJ, onde Danieli Balbi foi professora de literatura.

"Ela sempre foi uma pessoa sensacional, uma professora muito atenciosa. Não se tratava só de uma questão estética, mas da essência de uma pessoa. Ela tem que se olhar no espelho e se sentir feliz. Vivemos apenas um vez e se podemos colaborar com o bem-estar do outro, por que não? Infelizmente o preconceito com o transexual é altíssimo no Brasil, recebem muitos julgamentos. A sociedade é dura. Quando pensamos que está avançando, retrocedemos", afirma o estudante.

Luta por dignidade

Danieli Balbi é professora universitária, mestre, doutora, roteirista e dramaturga. Ela cursa atualmente mais uma graduação: ciências econômicas. Em 2018, candidatou-se a deputada estadual pelo PCdoB (RJ), mas ainda não sabe se irá concorrer novamente neste ano.

A professora diz não defender apenas uma causa. "Milito pela ciência, alocação de verbas para desenvolvimento de pesquisa pública, mas minha vida é uma eterna militância em diferentes frentes".

Ela defende ainda a necessidade de avanços do poder público em áreas, como saúde, educação e geração de emprego e renda para pessoas trans e aponta a falta de legislações para incentivar o ingresso do grupo no mercado de trabalho.

"Hoje, 90% dos transgêneros estão na prostituição, embora queiram sair dessa situação. Por isso, é necessário incentivo à escolarização formal, qualificação profissional por meio de cursos técnicos e nas universidades."

"Há muitos gargalos nas políticas públicas, mas o que houve de avanço foi por causa de nossa luta pela dignidade. Temos que vencer questões ligadas à culpa e à falta de aceitação."

A professora diz ser indispensável ao poder público trabalhar ações para evitar a evasão escolar, com formação de docentes e da comunidade escolar sobre questões de diversidade.

"É fundamental trabalhar essa agenda e haver um acompanhamento psicológico desses estudantes para evitar a evasão, pois de certa forma a pessoa trans é expulsa da escola."

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