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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em aula prática, Brasil levaria nota zero no tema de redação do Enem

Lula durante evento de campanha com comunidades indígenas, em Belém  - Marx Vasconcelos/Futura Press/Estadão Conteúdo
Lula durante evento de campanha com comunidades indígenas, em Belém Imagem: Marx Vasconcelos/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

15/11/2022 04h00

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Para boa parte da população brasileira, a conexão com seus ancestrais se resume a festas típicas, cores da bandeira, músicas tradicionais, clubes de colônia. O ponto de contato com o passado é um visto de cidadania.

Quando desembarcaram por aqui, as levas de imigrantes europeus que vieram substituir, como assalariados, os trabalhadores escravizados iniciaram um jeito próprio de contar a história do país que já existia antes do desembarque.

Os tambores, os ritmos, as linguagens, filosofias e modos de estar no mundo, preservados por quem já habitava o Brasil, pareciam-lhes estranhos, um mundo à parte.

A ocupação desse "centro" do eixo produtivo e social teve, como consequência, a idealização de uma "margem". Marginalizados estavam os corpos que passaram a ocupar as periferias das grandes cidades. E, longe delas, e também do campo da visão, permaneceram os povos originários e/ou sobreviventes de um massacre produzido muito antes de um novo país emergir.

À margem esses povos seguiram e à margem seguem do olhar e das atenções das forças de trabalho que vieram para cá "progredir". Desses povos muitos de nós, descendentes de imigrantes europeus, inclusive jornalistas e formadores de opinião, só nos lembramos quando o processo de expansão dos negócios invade áreas protegidas e, como nos tempos da antiga colônia, a violência explode em forma de destruição e morte.

Era essa expansão que Bruno Pereira e Dom Philips tentavam denunciar quando foram assassinados.

Deles nos lembramos também quando chegam às mãos de ministros dilemas como os do marco temporal, em que as forças hegemônicas reivindicam o direito de ocupar as terras das quais foram expulsos seus povos originários e que não haviam sido reivindicadas até a Constituição de 1988.

Não é possível pensar no Brasil hoje ou em qualquer outro período da História sem falar dos desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais. Os mesmos povos que, de tempos em tempos, são desumanizados até se metamorfosearem em uma grande pedra no caminho do eixo do progresso.

Esses desafios foram o tema da redação do Enem em 2022 — para surpresa de muitos de nós, que treinamos desde sempre os olhares para os desafios que passam longe das áreas hoje sob ameaça da aniquilação.

"O que você escreveria nesta redação?", ouvi, logo após a divulgação do tema, sem saber exatamente o que responder.

O que escreveríamos?

Com exceção de bravos amigos de profissão que tiveram a coragem de se embrenhar pela realidade desses povos e tentar trazê-la para o centro das discussões, são poucos os que teriam na ponta da língua o que dizer.

Esses desafios não rendem manchetes. Não rendem clique. Não prendem a atenção.

Não nos tocam nem nos conectam à mesma história num país onde ponto de origem pode ser uma aldeia no Jaraguá, para alguns, ou uma cidadezinha no norte da Itália, para outros. Entre um ponto e outro, o que, além do clichê, nos une como nação? O que deveria merecer mais atenção do que a urgência de sobreviver? Como isso se conecta a quem capturou a bandeira do país e suas cores para defender o extermínio de quem não se enquadra em uma ideia única, e fechada, sobre Deus, pátria e família?

Ao fim da prova, servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão responsável pela elaboração do Enem, comemoraram o fato de que, nesses últimos quatro anos, o exame passou praticamente ileso das investidas ideológicas do governo Bolsonaro.

Se fosse começar a rabiscar uma redação a respeito, diria que um dia, quem sabe num futuro próximo, os brasileiros em sua totalidade, e não em frações, poderão entender a violência embutida em frases como "cada vez mais o índio (sic) é um ser humano igual a nós, então vamos fazer com que o índio (sic, sic) se integre à sociedade e seja realmente dono de sua terra".

Ler e reler sentenças do tipo sem entender o quanto isso é violento só demonstra o tamanho do desafio de quem precisa construir não só uma linha de argumento lógico na prova, mas um futuro menos predatório e menos autodestrutivo.

Esse desafio está posto ao presidente que foi eleito prometendo dar espaço, em seu futuro governo, a quem só é notícia neste país quando a violência do discurso se converte em risco à integridade de seus corpos e sua história viva.

Como começar uma prova sobre direitos de povos que não estão à vista nem no centro das atenções?

É o mesmo que perguntar o que temos a dizer, afinal, sobre os responsáveis por garantir o futuro do planeta e conter o colapso e a destruição que nosso modelo consagrado de produção de riquezas aprendeu a chamar de "progresso".

Não são outros os desafios colocados agora durante a COP 27, que reúne no Egito a elite global pensante para elaborar respostas que os povos tradicionais, sobretudo os originários, nos dão de graça há muito tempo: como sobreviver hoje sem destruir nosso futuro?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL