Em 30 anos, entidade viu demanda por diversidade racial no trabalho ir de zero a dez

Fundado por Cida Bento e forjado no movimento negro pela Constituinte, Ceert anuncia parceria com Pacto Global da ONU

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São Paulo

Pioneiro no uso de dados estatísticos sobre raça e cor como instrumento de promoção da equidade racial no acesso a trabalho, educação e justiça, o Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) comemora 30 anos de existência, ao longo dos quais viu as demandas por equidade racial no mercado de trabalho ir de zero a dez.

Parte deste processo, o Ceert anuncia nesta terça-feira (20) uma parceria com a Rede Brasil do Pacto Global, das Nações Unidas: o programa Equidade é Prioridade Étnico-Racial.

O Ceert foi fundado e é dirigido pela psicóloga e colunista da Folha Cida Bento, eleita pela revista britânica The Economist como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade. ​

O programa foi desenhado como um facilitador de diversidade racial em cargos de liderança de empresas da iniciativa privada atentas às demandas sociais por representatividade e às potencialidades de composições mais plurais.

A doutora em psicologia e fundadora do Ceert, Cida Bento
A doutora em psicologia e fundadora do Ceert, Cida Bento - Zanone Fraissat/Folhapress

“O primeiro retorno de participar do programa é a empresa ficar mais concernente com o seu contexto e, portanto, mais atenta a quem consome seus produtos ou serviços”, explica Bento. “Boa parte das organizações hoje sofrem pressões de investidores e parceiros para que deixem de ser monolíticas, uma bolha branca quase que ameaçada por um território que se sente totalmente excluído”, afirma.

Hoje, 56% da população brasileira se declara negra, mas apenas 4,7% dos quadros executivos das 500 maiores empresas do país são negros, segundo o Instituto Ethos. Nos postos de gerência a proporção de negros é de 6,3%. Já entre aprendizes e trainees, o percentual de negros é de cerca de 57%.

Ao mesmo tempo, estudos da consultoria internacional McKinsey já apontaram para uma relação positiva entre diversidade e performance financeira: empresas que investiram em diversidade étnica e cultural superaram em 36% a lucratividade das concorrentes que não fizeram este investimento.

“Muitas empresas entendem que é suficiente preencher de maneira diversa os cargos de base e, quanto mais alta é a posição na pirâmide da empresa, mais branca e masculina ela fica”, diz Júlia Rosemberg, especialista em relações raciais e de gênero no Ceert. “Trabalhar diversidade sem marcar diferenças nem criar metas é perfumaria.”

Rosemberg explica que o programa inclui um censo institucional de cada empresa, uma análise de dados setoriais e regionais e um diagnóstico dos processos de recrutamento e promoção. A partir de todas essas variáveis, é estipulado um plano de ação com metas factíveis para cada caso.

“O setor privado brasileiro está cada vez mais maduro quanto à diversidade, mas necessita aumentar e acelerar”, afirma Carlo Pereira, diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global da ONU. “É importante ampliarmos os compromissos públicos sobre equidade e identificarmos que as empresas precisam dar mais oportunidades para pessoas negras em cargos de liderança e se comprometerem com elas.”

Para o diretor-executivo do Ceert, o advogado Daniel Teixeira, para além de legitimidade e representatividade, as empresas que se inscreverem no programa “ganham futuro”. “No Brasil de hoje, não tem mais como a população negra ficar de fora sem causar muito barulho. E essa demanda aumentou ainda mais depois do assassinato de George Floyd, nos EUA, e de João Alberto Freitas, no Brasil.”

A parceria com o Pacto Global coroa uma trajetória institucional do Ceert dedicada a assessorar instituições públicas e privadas na promoção da equidade racial, além da promoção do acesso a direitos pela população negra.

Fundado por Cida Bento, pelo advogado Hédio Silva Júnior e pelo sociólogo Ivair Alves dos Santos em setembro de 1990, o Ceert foi forjado nas articulações do movimento negro pela Constituinte e no calor da consagração do racismo como crime inafiançável e imprescritível.

“Fomos concebidos nesses processos coletivos, atuando de forma orgânica com os movimentos sociais, e o nosso grande objetivo sempre foi a defesa de direitos e a abertura de instituições para que se tornem mais cidadãs e democráticas”, explica Bento. Ela destaca essa relação orgânica a partir da participação do Ceert em coletivos como a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e na Coalizão Negra por Direitos.

Desde a fundação, o Ceert ajudou a colocar as relações raciais numa agenda de políticas públicas para a educação, o trabalho e a justiça social que ignorava a questão, contaminada pelo mito da democracia racial.

"Fico impressionada com o quanto eu e o Ceert somos procurados hoje. Em 1991, era justamente o inverso", observa a diretora da entidade.

“Cida Bento é uma pesquisadora altamente reconhecida no campo dos estudos sobre trabalho e relações raciais, assim como é uma incansável ativista na luta contra a discriminação no acesso ao emprego e nos locais de trabalho”, afirma a socióloga Márcia Lima, professora da USP e coordenadora do Núcleo Afro, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). “Se avançamos na agenda sobre diversidade racial no trabalho, devemos muito ao Ceert.”

Já em 1992, o centro denunciou o Brasil à Organização Internacional do Trabalho pelo descumprimento da Convenção 111, que trata da discriminação em matéria de emprego. De lá para cá, colecionou vitórias em casos emblemáticos de racismo —o mais recente deles foi a condenação em primeira instância do aluno da FGV de São Paulo que chamou um colega negro de “escravo”.

Na promoção da equidade racial no mercado de trabalho, a organização consagrou um modelo de censo de diversidade desenvolvido pelo sociólogo Mário Rogério, diretor do Ceert, que faz um retrato das instituições a partir de dados de raça cruzados com cargos, salários, promoções e oportunidades, criando indicadores de inclusão racial.

“As empresas se sentem pressionadas, e a pressão, principalmente nas redes sociais, sobre elas é muito grande”, afirma a socióloga Neca Setúbal, presidente da Fundação Tide Setúbal.

“Teremos empresas que vão usar isso na superfície, como marketing e moda, e outras que vão fazer um trabalho mais sério e aprofundado. É um caminho longo, como o Ceert sabe bem, porque envolve quebra de preconceitos e mudança de cultura e de lugar. Não é fácil abrir esse espaço”, avalia ela, que enxerga avanços no setor da educação privada, a partir de mudanças curriculares, contratação de professores negros e concessão de bolsas de estudos para negros. “Temos de celebrar isso e torcer para que entre na educação pública, onde estão 80% dos estudantes brasileiros.”

Ao longo dos anos, o Ceert se tornou referência também na área da educação. Mapeou 3.000 práticas de equidade em escolas públicas de 1.100 municípios brasileiros e criou o Prosseguir, um programa de bolsas para fortalecer jovens lideranças negras que hoje chegam às universidades e para qualificar a entrada desses jovens no mercado de trabalho.

“Existe uma juventude negra muito inquieta, impaciente, querendo mudança e com urgência para isso”, diz Bento. “A presença negra triplicou nas universidades a partir das políticas de cotas. Como o mercado de trabalho vai lidar com isso? Esse debate nunca esteve tão aquecido.”

Para ela, é difícil mensurar os avanços ocorridos em relação à desigualdade racial no campo da educação e do trabalho, uma vez que que os dados do Censo mais recentes são de 2010, e muitas mudanças ocorreram de lá para cá. "Tenho a sensação que isso pulula, cresce. Acho que veremos mudanças expressivas nos próximos anos."

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