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EJA não é resumão do ensino regular

Já passou da hora de desconstruir algumas ideias sobre a Educação de Jovens e Adultos

POR:
Ewerton de Souza
Crédito: Getty Images

Sou coordenador em uma escola que trabalha com Educação de Jovens e Adultos (EJA). Uns tempos atrás, um professor me confessou angustiado sobre sua frustração de não dar conta do conteúdo de Matemática que deveria ser ensinado para os alunos. Ele me relatava que, se já era difícil cobrir todos os conteúdos no ensino regular, na Educação de Jovens e Adultos, pelo modelo aligeirado em que ela se organiza, fazê-lo era impossível. E acrescentava “será que estamos preparando esses alunos para o Ensino Médio?”.

De fato, um professor que tente dar conta de todos os conteúdos do Ensino Fundamental num curso de Educação de Jovens e Adultos entra em uma invencível corrida contra o tempo. A ideia de ver alguém tentando, me lembra aquela cena em que Alice no País das Maravilhas encontra um coelho esbaforido a correr e gritar com o relógio na mão “Ai! Ai! Vou chegar atrasado demais!”. Melhor nem tentar.

Tampouco é uma boa ideia pensar um curso na Educação de Jovens e Adultos como um resumão aligeirado de uma série de conteúdos que, em tese, deveriam ser ensinados no Ensino Fundamental. Isso irá resultar numa frustração imensa para o aluno que, caso consiga aprender alguma coisa, vai perceber cedo ou tarde que o que viu – e somente viu – não dialoga em nada com situações concretas da vida real. É correr atrás do vento!

Por isso, convido vocês a descontruirmos algumas ideias sobre a EJA. Ideias que fazem professores e alunos entenderem essa modalidade como um antigo supletivo no qual se sonha possuir algo a que não se teve acesso numa idade considerada ideal.

Para o primeiro ponto é preciso considerar o imaginário que se tem da EJA, de um público  já adulto e inserido no mercado de trabalho. Disso, advém de uma ideia de que, por se tratar desse público, o curso a ser oferecido deve condensar o máximo possível de conteúdos em um tempo menor, uma vez que não se pode perder tempo com a escola.

Sabemos que a aceleração dos estudos não é um instrumento a ser menosprezado, dada a realidade da vida de muitos de nossos educandos jovens e adultos e a necessidade em muitos casos de concluir o Ensino Fundamental e/ou Médio para acessar postos mais qualificados do mercado de trabalho.  Porém, de outro também testemunhamos, como educadores de EJA, diversas situações nas quais os educandos precisam de mais tempo para se desenvolver e construir aprendizagens.

Uma pessoa que passou 20, 30, 40 anos da sua vida vivendo numa sociedade letrada sem saber ler uma palavra, possivelmente apresentará dificuldades de se alfabetizar que exigem do professor intervenções mais elaboradas e maior tempo de trabalho. Daí que o importante é lembrar que cada educando tem seu próprio tempo. E isso, a despeito da duração dos cursos, precisa ser respeitado. O fundamental não é se ele terminará em seis meses o que, em tese, deveria fazer em um ano. O fundamental é se o tempo oferecido a ele foi o suficiente para que pudesse realmente aprender. Do contrário, cairemos naquela velha farsa do professor que finge que ensina e do estudante que finge que aprende.

Outro ponto importante toca a ideia de esgotar conteúdos. Aqui, é necessário evocar obrigatoriamente Paulo Freire com sua reflexão sobre Educação bancária. Infelizmente ainda estamos tradicionalmente presos à ideia de que ensinar é transmitir conhecimentos. Nessa esteira, o professor é o detentor de um saber aparentemente esgotável que deve ser depositado em um aluno que nada traz consigo.

Quando vivemos a realidade de uma turma de EJA, sabemos que esta visão não se sustenta. Em primeiro lugar, porque se encontra totalmente deslocada do tempo em que vivemos, no qual sabemos que os conhecimentos não estão acabados nem tampouco podem ser esgotados. Segundo, porque basta conviver com os educandos da EJA para saber que eles não são tábulas rasas. Pelo contrário, são detentores de uma história, de uma trajetória de vida que lhes faz trazer consigo inúmeros saberes e aprendizagens que não podem ser menosprezados.

Nesse sentido, cabe recordar que é essencial respeitar o educando como um sujeito que tem tanto a aprender com o professor quanto a lhe ensinar pelas suas vivências, pela sua experiência de vida e pelos conhecimentos que construiu por outros caminhos que não a via formal da escola.

Mudando o cenário
Dito isso, como podemos socorrer aquele professor ou equipe de professores que se sente angustiada com a equação entre tempo e extensão dos conteúdos a serem ensinados?

Como coordenador pedagógico, propus certa vez à minha equipe docente que fizéssemos um exercício de reflexão no qual responderíamos à seguinte pergunta: que conteúdos das nossas disciplinas ou áreas do conhecimento podemos jogar fora?

Às vezes, pela nossa formação inicial de professores damos um valor demasiado a conteúdos que, se pensarmos bem, são preciosismos inúteis que só desejamos ensinar para o dourar mais a pílula das nossas disciplinas. Refletir sobre o que ensinamos é um bom caminho para enxugar a lista de conteúdos que desejamos levar para dentro da sala de aula.

Um segundo passo – mais importante – é problematizar com o coletivo docente a própria ideia de conteúdo. Pensar em um ensino por conteúdos de uma maneira tradicional (aqueles conhecimentos escolares cristalizados e valorizados historicamente pela escola) não está adequado à fluidez dos tempos em que vivemos. Uma proposta mais interessante e econômica em termos de currículo é imaginar quais são os saberes-fazeres que desejamos que nossos educandos desenvolvam. Não que vamos deixar de trabalhar com conteúdos, mas estes passarão a ser “pretextos” para situações de aprendizagem que desenvolverão as habilidades que realmente queremos que nossos estudantes adquiram e que extrapolarão a dimensão cognitiva dos nossos educandos. Dessa forma, o importante não é se darei conta de uma lista de conteúdos, mas se, num determinado período de tempo do curso, meus alunos alcançaram objetivos de aprendizagem que são importantes ao seu desenvolvimento.

Assim, por exemplo, em vez de nos preocuparmos se transmitimos aos educandos nomenclaturas infindas de Língua Portuguesa ou fórmulas extenuantes de Matemática. Buscaremos compreender se, a partir das propostas de aprendizagem que desenvolvemos, nossos educandos aprenderam, por meio de textos ou de problemas, a inferir informações, a analisar situações, a considerar aspectos diferentes de um contexto, e assim por diante, lendo, escrevendo e calculando em situações práticas que dialoguem com suas vidas e com suas histórias.

Por esse caminho, haverá mais segurança por parte do professor de que, ao dar continuidade aos estudos num outro ano ou etapa, o educando terá realmente aprendido e poderá aprimorar suas habilidades. Isso, claro, se a etapa ou a escola para a qual ele for também não cair no erro do “conteudismo”.

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