NOTÍCIA

Edição 284

Efeitos da pandemia: atraso no desenvolvimento da fala nos bebês ao aumento de doenças mentais nos jovens

Neuropsicóloga fala sobre neurociência e aprendizagem e destaca os prejuízos oriundos ou realçados com a pandemia na vida das crianças e adolescentes

Publicado em 27/04/2022

por Laura Rachid

neuropsicologia-escola Segundo maior impacto da pandemia foi na aprendizagem escolar, alerta a neuropsicóloga (foto: arquivo pessoal)

Nos últimos nove anos, 70% das pesquisas da neuropsicóloga, fonoaudióloga e professora titular/pesquisadora da PUCRS, Rochele Paz Fonseca, são voltadas à neuropsicologia e neurociências escolares. Presidente da SBNp (Sociedade Brasileira de Neuropsicologia) e membra da Coordenação da Rede Nacional de Ciência para a Educação, em conversa exclusiva à Educação, fala sobre a importância do professor na aprendizagem do aluno segundo a neurociência, define o aumento de suicídio entre os jovens como um “fenômeno multidimensional”, além de alertar sobre os riscos do vício com a tecnologia digital e o quanto a pandemia tem afetado o desenvolvimento socioemocional e cognitivo das crianças.


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E faz um alerta: “secretarias municipais, estaduais de educação e governo federal devem rever e distribuir o conteúdo, não podem cobrar em 2022 o que seria esperado para um ano normal”. Confira a entrevista.

neuropsicóloga

Os estudos de Rochele focam a neuropsicologia e neurociências escolares
Foto: arquivo pessoal

Educação – O que tem de novo na neurociência sobre aprendizagem? O que estão descobrindo ou o que você pode apontar como algo que já foi consolidado, no sentido da aprendizagem?

Rochele – O papel das funções executivas na aprendizagem escolar, que são as funções mais nobres da cognição humana, age como se fossem a diretora da escola. A nossa mente é uma escola, então o diretor ou diretora desta escola são as funções executivas. Elas ajudam a gente a planejar, a aplicar recursos da inteligência para as tarefas, a regular o nosso humor, a sustentar a nossa atenção, a controlar impulsos e a flexibilizar o nosso pensamento, que é a base da criatividade. As funções executivas se desenvolvem de zero anos até 20, 30 anos de idade. De todas as funções cerebrais, são as que têm um caminho mais longo de desenvolvimento. E o papel da escolarização é fundamental, porque os professores são inspiradores e são modelos destas funções executivas.

Então, por um tempo, o professor e a professora vão ter que ser as funções executivas-modelos da criança. Ela vai se inspirar nessas funções executivas-modelos dos professores para descobrir o seu próprio caminho. Quanto mais autônoma e independente funcional no seu cotidiano escolar essa criança for, mais funções executivas ela vai desenvolver. Nós temos que associar a transição da brincadeira livre para brincadeira com objetivo pedagógico e para tarefas sistemáticas mesmo mantendo o lúdico, para que essas funções executivas sejam recrutadas.

Os cursos de pedagogia e licenciatura já compreenderam a importância da neurociência? Por que a discussão, por exemplo, sobre o cérebro e o processo de aprendizagem ainda tem pouco destaque nessas formações?

Por culpa dos neurocientistas. Vou te dizer o porquê. Por muito tempo os pesquisadores falavam em uma linguagem difícil em cima do seu altar de ciência, e também deixaram uma falsa crença se estabelecer no meio da educação de que nós somos reducionistas. O que eu quero dizer com isso?

“Tudo é cérebro, o cérebro manda na aprendizagem.” Não. O cérebro é como se fosse um GPS com tracejados que nem aquelas cartilhas antigas, aquelas atividades de preencher o pontilhado para psicomotricidades. Então eu tenho caminhos tracejados e é a vida, é a experiência, é a vivência que vão modelar o cérebro.

O cérebro é um terreno fértil pré-programado para dar certo, mas para ele dar certo eu preciso plantar sementes, regar, deixar florescer, fazer poda. E o professor e o processo de escolarização, ambos têm um papel fundamental.

É possível apontar as causas do aumento de suicídio entre os jovens? E se, além disso, o estado e as escolas estão sabendo lidar com isso?

 

É um fenômeno multidimensional, como se fosse um monte de flechinhas e fatores.  Primeiro lugar, por muito tempo as crianças estão sendo incentivadas pela sociedade, e isso inclui pais e não só escola, a serem imediatistas – eu preciso ter prazer logo após fazer algo. Tudo que eu faço tem que ter um ganho. A prova disso é a gameficação e o uso e abuso de telas e de eletrônicos. Com isso, qualquer minifrustração, qualquer não que eu encontre na minha vida me causa uma percepção de tristeza e de fracasso muito maior do que a realidade. Eu tenho uma percepção aumentada dessa tristeza. Hoje também tem muitas fontes de informação em tela sobre como se matar.

A pandemia, o isolamento social, escolas fechadas e instabilidade dos pais foram quatro fatores, junto com o abuso de telas e de eletrônicos, que aumentaram a idea­ção e tentativas de suicídio em crianças e adolescentes, principalmente em meninas, porque nós somos um ser dependente de interação social.

E eu acredito que tanto o estado quanto as escolas têm que investir em formação de pais e de professores para dar conta desse recado. Nós precisamos retomar a motivação intrínseca de todos os atores da educação: professores, gestores, pais e as próprias crianças e adolescentes.

A tecnologia digital vem transformando a maneira de o homem pensar e agir? De que forma?

Muito. Hoje tem aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro, para lembrar de ter relações sexuais com o marido, para lembrar de tomar água, para ajudar a dormir, para ajudar a acordar, tem aplicativo para tudo. Conheci um adulto jovem que usava 36 aplicativos para controlar sua vida pessoal e sua vida profissional, ou seja, ele dedicava um dia da semana só para preencher os aplicativos. Ele não mandava mais na própria vida, os aplicativos mandavam. E isso é muito prejudicial, porque cria uma terceirização de esforço mental para as máquinas e faz com que fiquemos menos automonitorados e mais dependentes de uma regulação externa.

Este é o principal vício que as crianças desta geração estão adquirindo facilmente. Vamos ter que resgatar alguns valores do passado para que os recursos tecnológicos, que não têm mais volta e vão seguir conosco, prestem serviço para nós e não nós prestemos serviços a eles.

As pessoas estão lendo menos textos grandes e complexos por conta das redes sociais ou é um mito?

Elas estão sim. O perfil de hábitos de leitura e escrita está se reduzindo gradativamente. Com a pandemia, diminuíram na ordem de 30% os hábitos de leitura e escrita dos pais e das criancinhas.

Pensando nas crianças pequenas e talvez adolescentes, ficar quase três anos se relacionando com pessoas com máscara, evitando abraços e toques mais diretos, tende a gerar, sobretudo, prejuízo no desenvolvimento socioemocional e cognitivo?

Já temos evidências internacionais de que há prejuízos específicos da união de pandemia, escolas fechadas e máscaras. Porque as crianças precisam. Há um funcionamento cerebral que se chama neurônios espelho, e esses neurônios trabalham por imitação motora. Se eu estou te vendo, se você sorrir eu tenho vontade de sorrir. A máscara tampa 2/3 do rosto, então eu não consigo ter a pista socioemocional. Tem estudos mostrando que adultos e outras crianças de máscara não conseguem perceber a emoção tão bem quanto sem máscara.


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Que outros tipos de danos a pandemia tem gerado nas crianças?

O desenvolvimento socioemocional. A maioria desenvolveu medos, fobias e angústias diversas que têm a ver com a ideação das tentativas de suicídio.

Então tivemos um aumento de 20% a 66% de quadros de doença mental: entre estresse pós-traumático, depressão e ansiedade. Esses dados são de uma coletânea de artigos científicos. São estudos do exterior, nós não temos no Brasil. Os dados são principalmente da Itália, Espanha e Inglaterra.

O segundo maior impacto da pandemia foi na aprendizagem escolar: leitura, escrita e matemática, com aumento de aproximadamente 60% no analfabetismo infantil. Então tem escolas que começaram a ser reformadas na pandemia e juntando greve, recessos escolares, período pandêmico e reformas, estão há mais de dois anos fechadas.

Como reverter?

Secretarias municipais, estaduais de educação e governo federal devem rever e distribuir o conteúdo, não podem cobrar em 2022 o que seria esperado para um ano normal. Tem que revisar as bases, não dá para pular o conteúdo que não foi visto; por mais que os professores tenham se esforçado, isso tende a alterar a motivação e a saúde mental, inclusive dos professores, e a desmotivação intrínseca nas crianças.

Depois é aumentar muito os hábitos de leitura em casa e nas escolas para as crianças darem conta e diminuir, dentro do possível, o período de exposição a telas e a eletrônicos.

Os professores têm que entender que pelas evidências neurocientíficas o ideal é dar exemplos, pensar em voz alta e dar um norte de estratégias, então é fazer um ensino explícito, dirigido, por mais significativo, lúdico e motivador que seja. É dar um dos ‘caminhos de pedras’ para as crianças, porque quando uma criança está com um atraso cognitivo e sociocultural, uma vulnerabilidade e atraso de aprendizagem, depois desses dois anos de pandemia fica muito difícil para ela ter criatividade logo de cara, ela precisa ter umas pedrinhas para poder trilhar o caminho.

Nesse período de isolamento social, tem notado atraso no desenvolvimento da fala dos bebês?

Os bebês atuais da geração pandêmica, geração C, geração coronavírus, têm tido muito atraso em habilidades comunicativas e habilidades linguísticas e expressivas, ou seja, a fala como popularmente chamamos. Principalmente porque o cérebro funciona sob demanda, então eu preciso ter demanda de interação social com os meus pares, não só com adultos, com crianças da minha faixa etária, para eu ver que para sobreviver eu preciso falar.

Com escolas fechadas, os pais também não botaram seus filhos na educação infantil porque estavam trabalhando em casa. O aporte econômico da família diminuiu, então cai muito o número de matrículas em escolas privadas de educação infantil e as escolas públicas estavam fechadas. Com isso, observa-se um atraso de fala tão grande que combinou contribuindo para um atraso no marco do desenvolvimento do CDC, que é o órgão de controle de doenças e prevenção dos Estados Unidos. Hoje eles estão atrasando oficialmente seis meses o início de fala de palavras e frases para as crianças.

O que antes era pedido com dois anos agora passa a ser pedido com dois anos e meio, e isso implica a diminuição de intervenção de acesso a serviços públicos nos Estados Unidos e aqui diminuição de indicação de serviço privado.

Escute nosso podcast:

Autor

Laura Rachid


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