NOTÍCIA

Edição 294

Educadores entre a exaustão e o afastamento

Depressão, ansiedade e outros transtornos contribuem para o esgotamento mental de profissionais da educação. Os alunos também têm sintomas similares e naturalmente buscam acolhimento escolar, familiar e social

Publicado em 22/05/2023

por Lucas Ávila

saúde mental_shutterstock No Brasil, 75,5% dos profissionais da rede pública e privada acreditam que questões psicológicas são um dos principais fatores que fazem os professores desistirem da carreira, revela pesquisa da Conectando Saberes Foto: Shutterstock

A estudante mineira de sociologia Karina Chaves (nome fictício), de 19 anos, sonha em voltar à sala de aula como profes­sora para ressignificar o sentido da palavra escola em sua vida. “Quero levar uma perspectiva diferente para a educação de crianças e jovens, uma forma de cicatrizar as feridas que ficaram abertas no meu processo de aprendizagem”, conta. Vítima de abuso sexual quando criança e inserida em um ambiente familiar agressivo, sua entrada tardia no ensino formal, quase aos oito anos de idade, na rede pública da região metropolitana de Belo Horizonte, foi marcada por ainda mais problemas.


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“Era uma criança muito introvertida e assustada, tinha dificuldades em focar atenção nas aulas e minha família sempre era chamada pela direção”, lembra. As constantes crises de ansiedade e ataques de pânico eram, muitas vezes, incompreendidas pelos pais e pela escola, já que ela mesma não conseguia contar a ninguém sobre os abusos que havia sofrido.

“Os estudantes mais velhos sempre faziam bullying com os mais novos. Fui vítima de muito racismo e não me senti acolhida pela escola, cheguei a ser agredida fisicamente por uma professora que ficou indignada porque cheguei à aula com o dever de casa sem fazer”, recorda.

A estudante tentou suicídio por duas vezes, uma delas dentro da própria instituição que frequentava. As memórias tristes deixaram marcas, mas há três anos Karina tenta se livrar dos traumas por meio do acompanhamento psicológico. “Fazer terapia foi fundamental para eu entender todo esse processo por que passei, inclusive o de sustentar o sonho de ser professora”, relata. O percurso escolar repleto de sofrimento mental também era a realidade de vários colegas. “Todos que apresentavam comportamentos diferentes da maioria passavam por ansiedade ou depressão”, lembra.

Embora os traumas e violências não sejam problemas recentes do ambiente escolar, pesquisas mostram que o sofrimento aumentou após a pandemia da covid-19. Um levantamento divulgado em setembro de 2022 mostra que seis em cada 10 jovens passam ou passaram por ansiedade e 50% sentem cansaço extremo. Os resultados, divulgados no relatório Juventudes e a pandemia: e agora? coordenado pelo Atlas das Juventudes e realizado em parceria com Conselho Nacional da Juventude, ainda mostrou que, dos mais de 16 mil jovens entrevistados entre 15 e 29 anos, 18% relataram depressão e 9% automutilação ou pensamento suicida. 

Durante o período de isolamento social, tanto estudantes quanto profissionais de educação tiveram sobrecarga de estresse. Patrícia Rabelo, coordenadora de uma escola particular em Pará de Minas, MG, conta que sentiu o trabalho aumentar muito após a suspensão das aulas presenciais, em 2020. A adaptação dos profissionais às tecnologias remotas foi muito difícil. “Ninguém estava preparado”, recorda. Seu filho, que na época cursava o ensino médio, sofreu pela falta de socialização. “Por ser diabético, era do grupo de risco e só voltou após a segunda dose da vacina. Nós ficamos mais de um ano sem encontrar nossas famílias e eu não exigia que meu filho tivesse compromisso pedagógico, queria apenas manter sua saúde mental preservada.”

No início deste ano, ela sentiu na pele todo o estresse causado pelos anos de exaustão e muita cobrança no trabalho. “Após o primeiro dia de aula de 2023, quando trabalhei das 7h às 22h, eu surtei. No dia seguinte, na terapia, perdi o controle, chorei muito. Até hoje estou tomando remédios”, conta.

Adoecimento da comunidade escolar

Diversas pesquisas realizadas nos últimos anos apontam que o adoecimento da comunidade escolar é um dos principais problemas a serem enfrentados hoje pela escola. Uma das mais recentes, Futuro da docência, realizada pela ONG Conectando Saberes e divulgada em fevereiro deste ano, mostrou que 75,5% dos profissionais da rede pública e privada no Brasil acreditam que questões psicológicas são um dos principais fatores que fazem os professores desistirem da carreira. O levantamento ouviu 6.430 profissionais da educação de todo o país. Outra pesquisa, Saúde mental dos educadores 2022, realizada pela Nova Escola em parceria com o Instituto Ame sua Mente, mostrou que mais de 20% dos profissionais consideram sua saúde mental ruim ou muito ruim. Os principais problemas apontados são: ansiedade (60,1%), cansaço excessivo (48,1%) e insônia (41,1%). 

O professor de matemática da rede estadual de Minas Gerais Delcio de Brito Chagas, de 63 anos, começou a dar aula em 1994. Hoje, é o responsável pela biblioteca de uma unidade. Foi afastado da sala de aula por questões relacionadas ao estresse. “O professor está sempre mais desmotivado, mais triste e muito ansioso. Acho que as novas gerações estão desinteressadas pela escola. A diretora pediu a minha transferência para a biblioteca porque estava muito nervoso e poderia perder meu cargo como professor”, revela.

Outros professores, como é o caso de Thiago Luiz Santos de Oliveira, 42 anos, já tiveram que ser internados para tratar doenças relacionadas à saúde mental. Ele vem lutando contra uma depressão que o levou a diversas crises de ansiedade e ao afastamento do trabalho. Professor efetivo em uma escola estadual de Belo Horizonte desde 2006, foi coordenador e vice-diretor da unidade, mas começou a sofrer perseguições internas por colegas que não queriam vê-lo ganhando espaço.

saúde mental

Professor Thiago Luiz
Foto: arquivo pessoal

“É um esgotamento em função do ambiente, você tem vontade de trabalhar, mas o meio não contribui para o mínimo necessário. O problema não eram meus alunos, era a falta de motivação vinda da própria diretoria”, comenta.

Ainda afastado de suas atividades por questões de saúde mental, ele não quer mais trabalhar naquela unidade, mas não desistiu da profissão. “Penso que, apesar dos problemas, existem escolas que oferecem ambientes mais saudáveis para realização do trabalho docente”, conclui. 


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Entidades debatem caminhos para superação dos problemas

Os casos de estudantes e profissionais da educação apresentados estão longe de ser um problema apenas dos mineiros. A saúde mental dentro do ambiente escolar tem preocupado e mobilizado categorias profissionais de Norte a Sul do Brasil. Em Roraima, por exemplo, o Sinter, sindicato que representa os trabalhadores de educação do estado, afirma que existe um percentual alto de professores afastados com problemas psicológicos. Um quarto dos profissionais da rede pública são readaptados, ou seja, saíram da sala de aula e estão em outras funções na escola.

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Cheiliana Lima, do Conselho Estadual de Educação de Roraima
Foto: arquivo pessoal

“Ansiedade, depressão, burnout e síndrome do pânico são as principais queixas. Há também casos de violência e assédio moral que tornam o trabalho vulnerável. Pra se ter uma ideia, o próprio sindicato oferece suporte psicológico gratuito para os professores”, afirma Cheiliana Lima, diretora da entidade e membra do Conselho Estadual de Educação de Roraima. 

Na outra ponta do país, no Rio Grande do Sul, o CPERS, que representa cerca de 80 mil trabalhadores, diz que as reclamações são frequentes. Segundo a presidente Helenir Aguiar Schürer, as cobranças e a desvalorização profissional são as causas de tantos problemas. “A sociedade brasileira está doente e a escola não é uma ilha, ela é o espaço social onde mais se refletem os problemas das famílias desestruturadas e do estimulo à violência. Uma educação voltada para a tolerância e o amor depende de uma mobilização geral da sociedade, os espaços educativos não conseguem fazer isso sozinhos”, afirma.

Presidente do CPERS, Helenir Aguiar Schürer
Foto: arquivo pessoal

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) confirma que o problema se agravou em função da pandemia da covid-19. Um levantamento chamado Novas formas de trabalhar, novos modos de adoecer, divulgado pela entidade no final de 2021, mostra que a ansiedade, depressão e o sentimento de desesperança estão entre os problemas que mais acometeram os professores durante o distanciamento social. Para a secretária nacional da CNTE de Saúde do Trabalhador da Educação, Francisca Seixas, cabe aos governos políticas públicas para prevenção e tratamento das pessoas adoecidas.

“Precisamos de uma mudança no modelo de gestão que passe a valorizar o professor e dê espaço para que os profissionais e estudantes se expressem. O acompanhamento psicológico da comunidade escolar deve ser permanente, com prevenção à violência que afeta todas as pessoas envolvidas na escola”, ressalta.

Caminhos para a superação

A onda de ataques em escolas que chocou o país recentemente pode estar relacionada também a sofrimentos e mágoas que ex-alunos sentem do ambiente escolar. É o que avalia Ana Carolina D’Agostini, psicóloga, pedagoga e coordenadora de formações do Instituto Ame sua Mente. “Estamos vivendo o começo do fim de uma pandemia, em que a ansiedade e a depressão fizeram parte da realidade de muita gente. O problema agora é mais latente, é a violência armada, que muda totalmente o cotidiano de uma escola”, afirma.


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O caminho para reduzir ou aliviar esse quadro ainda é incerto, mas existem ferramentas eficazes que podem combater esses obstáculos. Dentro da escola, a alternativa pode ser a de fortalecer grupos que já funcionam, como grêmios, associação de famílias e comissões multidisciplinares formadas por professores e funcionários. “Precisamos compreender a natureza dos problemas e buscar soluções conjuntas, não apenas contra esses ataques armados, mas contra a prática do bullying, assédio contra professores, desrespeito à diversidade, intolerância. A escola deve ser vista como um microcosmo social e deve trabalhar para fortalecer o senso de pertencimento”, explica Ana Carolina.

Já para as famílias, é importante estarem atentas ao tempo de tela dos estudantes nas redes sociais. “O jovem busca pertencer a algum lugar. Se não consegue essa sensação na escola ou na família, ele pode se ver nesses grupos extremistas, pode ser que não esteja conseguindo modular suas emoções”, ressalta. 

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“A escola deve ser vista como um microcosmo social e deve trabalhar para fortalecer o senso de pertencimento”, defende Ana Carolina D’Agostini, coordenadora do Instituto Ame sua Mente
Foto: arquivo pessoal

Outros especialistas em saúde mental também acreditam que é preciso olhar a questão de forma ampla. A psicóloga e professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Deise Juliana Francisco, que faz parte do grupo de pesquisa Saúde Mental, Ética e Educação da UFAL, diz que o mal-estar na sociedade não vem da escola, apenas é reproduzido por ela. “É um conjunto que tem a ver com o modo de produção capitalista, que individualiza os problemas, não traz um olhar mais amplo. É um olhar cômodo, já que impede que a gente possa fazer mudanças sociais mais substanciais”, ressalta. 

Ampliar a vigilância nas escolas para impedir a violência ou prestar atendimento individualizado aos profissionais sem garantir uma melhoria das condições de trabalho não irá mudar o quadro. “Eu acredito que as melhorias vêm através de políticas públicas para abrir espaços de escuta, criar melhores condições de vida, já que o nosso psiquismo parte das relações sociais. Toda a lógica capitalista é criada para a eficiência da produção, mas o olhar deve ser mais humano, mostrando as individualidades de cada pessoa”, reitera Deise Francisco. Essa mudança, no caso docente, vem com a valorização profissional, já que muitos trabalham em várias escolas para complementar a renda, podendo gerar desgaste e desesperança quanto à carreira.

Outra saída para mitigar os problemas de saúde mental dentro do ambiente escolar é uma atuação em rede, juntamente com o Sistema Único de Saúde (SUS) para desenvolver um trabalho em equipe com os estudantes e professores. É o cenário ideal para o psicólogo Micael Mattos Ozi, que atende instituições de ensino e atuou, na pandemia, no projeto Psicólogos na Educação, da Secretaria de Educação de São Paulo, o qual envolveu atendimento online em grupo para educadores, alunos e responsáveis. “Dizemos na psicologia que não se trabalham questões graves de maneira solitária, é preciso mobilizar um grupo em casos como esse. Muitos estudantes procuram os professores para falar de seus problemas, mas às vezes nem o docente sente que tem saúde mental para acolher aquele jovem”, diz.

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A solidão está em evidência, alerta o psicólogo Micael Mattos Ozi. “É preciso lembrar que somos seres sociáveis, necessitamos uns dos outros”
Foto: arquivo pessoal

 As vivências dolorosas que Micael atendeu durante a pandemia podem ter deixado marcas em uma geração inteira. “Ainda há pesquisas sobre o assunto, mas algo evidente é o aumento da solidão, que se agravou com o uso indiscriminado das redes sociais, não apenas em adolescentes, mas na sociedade em geral. É preciso lembrar que somos seres sociáveis, necessitamos uns dos outros”, afirma. Embora os caminhos para o enfrentamento dessas questões possam ser longos e difíceis, uma coisa é certa: o assunto é frequente dentro das instituições de ensino. Encontrar o diagnóstico já é um começo para se chegar ao bem-estar.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Lucas Ávila


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