publicado dia 20/08/2018

Educação escolar indígena: olhar integral para os saberes tradicionais e do território

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Selo Especial Eleições 2018 caminhos para a escola brasileiraSilvio Aquiles Euzébio tem 27 anos e é um indígena da etnia Guarani MBya que desde muito jovem sonhava em ser professor para as crianças de sua comunidade e agora o é.

Formado pela escola pública que fica no mesmo território de sua comunidade, ambas denominadas Peguao Ty, Silvio agora retorna ao colégio como professor de História, Geografia, Ciências e Guarani para 27 alunos do Ensino Fundamental e Médio.

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A escola, localizada no município de Sete Barras, interior do estado de São Paulo, formou outros quatro professores indígenas, que também passaram a lecionar no Peguao Ty ou em aldeias vizinhas.

Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.

“Eu quis ser professor porque aprendemos em comunidade, desde sempre, e agora temos a oportunidade de ampliar esses conhecimentos, de ler e escrever. Então estou disposto a ensinar e a aprender com os alunos, para que eles também possam crescer aqui”, explica Silvio.

Peguao Ty é uma das mais de 3 mil escolas em territórios indígenas no Brasil. Destas, 53,5% têm material didático específico para o grupo étnico, segundo o Censo Escolar de 2015, do Ministério da Educação (MEC).

Na escola de Silvio, utilizam um material de apoio produzido pelo Magistério Intercultural Superior Indígena da Universidade de São Paulo (USP), apresentado no idioma materno e na língua portuguesa.

Formação de professores e pertencimento

A formação destes professores indígenas e sua continuidade na escola da comunidade é bastante emblemática, como explica Cláudio Gomes da Victória, professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e especialista em educação escolar indígena. “Não adianta criar uma escola indígena e colocar um não-indígena para dar aula”.

Para Cláudio, este senso de pertencimento é fundamental. “Um não-indígena não vai conseguir fazer articulações porque não tem domínio pleno dos conhecimentos, não tem a tradição oral ou a vivência em comunidade. Mas desde que atenda demandas dos povos indígenas, a escola pode ser instrumento de fortalecimento dessas culturas”, complementa o docente que também é responsável pelo Curso de Licenciatura Indígena da UFAM.

Com 380 inscritos em 2018, o curso visa munir os indígenas de boas práticas pedagógicas, que possam complementar seus conhecimentos acumulados e facilitar as relações de ensino-aprendizagem.

Com a formação de professores e fortalecimento da educação escolar indígena, a UFAM espera garantir que os jovens possam permanecer em suas comunidades, se assim desejarem

Segundo o IBGE, 36% dos indígenas brasileiros já vivem em áreas urbanas. Os que vivem em áreas rurais, nem sempre querem mudar-se. Com a formação de professores e fortalecimento da educação escolar indígena, a UFAM espera garantir que os jovens possam permanecer em suas comunidades, se assim desejarem.

“Mudar para a cidade é uma transição difícil por ser um universo totalmente diferente. E um agravante é o fato da escola da cidade não trabalhar os aspectos culturais dos indígenas”, explica Claudio.

O escritor e educador Daniel Munduruku reforça que as escolas da cidade costumam receber as crianças indígenas com o estigma de “selvagem”, como alguém menos inteligente.

Vivendo em um contexto urbano, as crianças precisam ir para a escola para ter condições de enfrentar esse mundo. Mas pode ser um momento de muita angústia e dor”, diz Daniel, cuja experiência com as escolas da cidade sempre foi negativa. “Esse espaço costuma ser extremamente preconceituoso, racista, violento, partidário de uma educação elitista, que não sabe acolher toda e qualquer diferença.”

Contribui para este panorama o fato de poucas escolas regulares levarem em consideração a compreensão de tempo, produção, economia e espiritualidade que cada comunidade indígena traz consigo. Por isso, “pegar a escola da cidade e levar para uma aldeia é um modelo fadado ao fracasso”, alerta Daniel.

Afinal, o que é educação escolar indígena?

No Brasil, a população indígena é composta por cerca de 305 etnias que falam 274 línguas, e somam quase 900 mil indivíduos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Dada essa diversidade, para cada comunidade, de cada território, seria preciso uma escola diferente. Isso porque os saberes e tradições variam muito entre os povos. Não é possível, portanto, pensar em um modelo único de escola indígena, mas afirmar que estas devem ser criadas e gerenciadas por quem mais entende do assunto – os próprios indígenas. “Só assim seria possível garantir a total atenção ao território e à cultura”, diz Daniel.

O direito à educação escolar indígena específica, bilíngue e intercultural está assegurado na Constituição Federal de 1988, no 2º parágrafo do artigo 210: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”

O educador também ressalta que a educação não indígena é muito pautada por um espaço físico delimitado, que reproduz a cidade, enquanto para as sociedades indígenas a educação ocorre de maneira integral: “todo espaço é educativo”, diz.

Além disso, a figura do professor enquanto guardião do conhecimento também não faz muito sentido para essas comunidades, acostumadas às trocas de saberes entre todos. “Tudo é educativo: a roda de conversa no final da noite, a dança, o canto, a reza, as plantas medicinais e para alimentação”, conta Daniel.

O educador também explica que a ideia não é criar uma escola completamente apartada dos conhecimentos curriculares, e que o contato, por exemplo, com as tecnologias digitais é muito proveitoso.

“Só não podemos ofender e ferir a autonomia de cada povo, porque quando a escola vem com seu próprio modelo pré-fabricado para dentro de uma aldeia, está realizando um ato de violência ao gerar desconforto nas comunidades”, diz Daniel.

Por isso, permitir que as crianças de Peguao Ty cresçam e se desenvolvam dentro de sua comunidade, podendo também acessar outros conhecimentos, respeitando suas particularidades, é uma conquista. “A educação aqui faz sentido”, comemora Silvio.

Educação escolar indígena: experiência em Alto do Rio Negro

Na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), foi inaugurada em 2000 a Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali. Projetada e coordenada por indígenas, ela oferece Ensino Fundamental II e Médio para centenas de jovens, cuja formação inicial costuma ficar a cargo da própria comunidade.

Justamente por ter sido criada a partir de um desejo dos povos Baniwa e Coripaco, duas etnias muito próximas, que somam 6 mil indivíduos, a escola Pamáali atende às suas necessidades.

Alunos da Pamáali em alojamento da escola Pamaali, educação indígena

Alunos da Pamáali em alojamento da escola

Crédito: Instituto Socioambiental (ISA)

Como as comunidades estão distribuídas ao longo do rio Içana e no interior do Alto do Rio Negro, em plena Floresta Amazônica, muitos estudantes levam até cinco dias para chegar à escola. Por isso, alunos e professores permanecem dois meses na escola e um mês em sua comunidade.

Durante o tempo que ficam na escola, dormem em redes, e acordam cedo para tomar banho no rio. Segundo a crença dos antigos, não se pode comer sem banhar-se antes.

As aulas, muitas ministradas por outros jovens que se formaram na Pamáali, abordam português, matemática, ciências, informática, história, geografia e o patrimônio cultural imaterial do povo Baniwa e Coripaco. Por meio da aula de piscicultura, por exemplo, os alunos aprendem as armadilhas de pesca desenvolvidas pelos antigos, mas também a desenvolver técnicas modernas de pesca e cultivo.

“A Pamáali fortaleceu os povos Baniwa e Coripaco. Agora eles têm ferramentas para se tornarem o que quiserem”, diz o professor André Baniwa

Na parte de idiomas, a Pamáali busca um ensino plurilíngue. Vivendo na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, os alunos aprendem o português e o espanhol, bem como estudam sua língua nativa, o Aruaque, uma unificação da língua baniwa e coripaco, que também foi sistematizada para a escrita.

“O ser humano é naturalmente curioso, um cientista, um pesquisador”, diz André Baniwa, líder indígena que participou da fundação da escola e nela atua até hoje. “E o nosso sistema de ensino estimula isso. Era o que a comunidade queria, era esse o interesse de fazer uma educação escolar para os Baniwa e Coripaco”, explica.

Durante o tempo que retornam à sua comunidade, os alunos realizam pesquisas ou colaboram com o projeto social da comunidade. De volta à escola, apresentam os resultados para os colegas em um seminário.

Todo o percurso formativo, reconhecido pelo Ministério da Educação, dura cerca de 4 anos, dependendo do aluno. Uns demoram mais, outro menos. E a escola faz questão de respeitar estes tempos.

“Trabalhamos a partir da orientação dos idosos. Eles falam que cada um tem sua habilidade, seu dom, e não pode exigir isso [outro tempo de aprendizagem]”, diz André.

Já as avaliações acontecem de maneira coletiva, contínua e descritiva, composta por três partes: uma autoavaliação do aluno, uma do professor, e uma terceira que soma as duas. Nesse processo, o objetivo é acompanhar o desenvolvimento dos estudantes, avaliando suas potencialidades e o que precisa de mais atenção.

“A Pamáali fortaleceu os Baniwa e Coripaco. Agora temos vários jovens que estão atuando como lideranças dentro das comunidades e organizações, ou estão fazendo faculdade, mestrado, doutorado. É isso que importa, eles têm ferramentas para se tornarem o que quiserem”, diz André.

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