Por João Souza, G1 BA


Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

Há 31 anos, a Escola Comunitária Luiza Mahin, no bairro do Uruguai, em Salvador, aposta em iniciativas para promover uma educação antirracista, com o objetivo de aumentar o sentimento de representatividade para crianças que começam a aprender as primeiras palavras.

As coordenadoras pedagógicas da escola, Jandayra Bonfim, de 57 anos, e Valmira dos Santos, 38, acreditam que os legados antirracistas, se passados no momento em que as crianças começam a estudar, acrescentam muito no processo de aprendizado para o futuro.

Uma visão à frente do tempo das coordenadoras, pois décadas depois da fundação da escola, em 2003, a lei 10.639 determinou a inclusão da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, públicas e privadas. [Leia mais sobre a lei ao final da matéria]

A Escola Comunitária Luiza Mahin fica na Rua do Uruguay, Praça Santa Luzia, nº 18 - Quadra 05. Não há pagamento de mensalidade, apenas uma taxa para a associação que administra a instituição. Atualmente, ela conta com cerca de 285 alunos com idades entre 2 e 6 anos. A maioria deles mora na região, mas existem alguns que são residentes de outros bairros, como Cajazeiras.

"A gente começou com um grupinho de 20, depois se tornou cerca de 400, e hoje, como não trabalhamos mais com o Ensino Fundamental, a gente trabalha só com a Educação Infantil, esse número está em 285", contou Jandayra Bonfim.

A coordenadora Valmira Santos destaca que os ensinamentos são feitos a partir de três pilares. A identidade, o gênero e o pertencimento são essenciais para a construção não só do aprendizado, mas do caráter dos alunos.

"Os três pilares da escola são identidade, gênero e pertencimento. Aqui a gente fica desconstruindo, construindo e aprendendo o tempo todo. É um processo de aprendizado o tempo todo", contou a pedagoga.

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

Entre as ações que acontecem no dia a dia, os alunos participam de uma dinâmica com um espelho. Com o objeto, eles são convidados a olharem e contar o que enxergam.

"Nós fazemos a dinâmica do espelho para que os alunos se olhem, se enxerguem e falem o que estão vendo. Porque na maioria das vezes, os alunos dizem azul, verde, mas não têm a capacidade de dizer que a pele escura, que é negra e o cabelo é crespo", contou Valmira Santos.

"Isso é uma construção que a sociedade impõe, mas nós como agente da Educação, fazemos essa dinâmica diariamente para que eles possam se desconstruir e se reconhecerem", explicou.

Em entrevista ao G1, a coordenadora lembrou que a escola fez um projeto com o Ilê Aiyê e As Ganhadeiras de Itapuã. Os alunos foram apresentados às histórias do grupo e aprenderam um pouco sobre a cultura baiana.

"O legal é que eles conseguem entender o que acontece. As Ganhadeiras de Itapuã vieram aqui e eles comentavam que eram as personagens que a gente tinha mostrado nos livros", disse.

"Foi na época que apareceu as primeiras manchas de óleo. Eles falavam: 'Poxa, agora vai ficar difícil para os pescadores e para as ganhadeiras'. Então é isso, é importante você ensinar essa cultura para as pessoas ainda quando elas são crianças".

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

Outra dinâmica contada pelas coordenadoras é a de fazer a chamada falando o nome completo dos alunos.

"Às vezes acontece de ter dois, três alunos com o mesmo nome. Aqui chamamos pelo nome completo, porque a criança se reconhece, ela percebe que é ela que está sendo chamada, que o sobrenome é relevante e faz parte dela", disse Valmira dos Santos.

Início com dificuldades

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

A Escola Luiza Mahin nasceu sem nome, no início dos anos 90, após um grupo de mulheres, que tinham acabado de fundar a Associação de Moradores do Uruguai, perceberem que muitas crianças da região estavam fora da escola.

"Elas perceberam que muitas crianças estavam fora da escola, não tinham educação infantil. A gente não tinha carteira, não tinha máquinas, não tinha nada. As crianças sentavam no chão e a comunidade ajudava com papel para as crianças escreverem", lembrou Jandayra Bonfim.

Naquele momento, muitas daquelas mulheres não tinham formação acadêmica, mas ensinavam cerca de 20 crianças na base dos valores e dos conhecimentos próprios, que foram aprimorados com o passar do tempo.

"A escola não poderia ficar como a escolinha do bairro. A gente tinha que dar uma referência a essa escola, porque estava crescendo. Ela precisava de um nome, uma identidade", disse Jandaíra.

O batismo da escola veio a partir da figura história de Luiza Mahin. Ela era quituteira nas ruas de Salvador e o emprego permitiu que ela atuasse como um ponto de comunicação e articulação entre os escravos e não escravos revolucionários, que aparentemente compravam os quitutes, mas trocavam bilhetes com recados da organização da Revolta dos Malês.

"Os meninos começaram a pesquisar junto com os professores e aí surgiu a Escola Comunitária Luiza Mahin. Ela foi uma mulher guerreira, batalhadora como muitas mulheres que estavam aqui, resistente", contou a pedagoga.

Nos dois primeiros anos, a escola, que já contava com o apoio financeiro da ONG Visão Mundial, passou por algumas dificuldades. Entre elas, a laje recém-construída que desabou e uma ação judicial.

Com apenas um ano, a "Escolinha", como era conhecida na época, ganhou a primeira laje, depois de muita batalha e esforço das fundadoras do projeto.

"Com toda dificuldade, bateram a primeira laje. Antes era uma sala que dividia para duas turmas, então a gente foi vendo que estava crescendo e tinha a necessidade de fazer a laje", contou Jandayra Bonfim.

Laje construída duas vezes

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

"As mulheres ficaram famosas [no bairro] como mulheres da laje. Eram essas mulheres que pegavam baldes, areia, faziam a pasta para fazer a construção. Ficamos conhecidas como mulheres pretas, mulheres da laje", conta Jandayra sobre a organização para construção da laje da Escola Comunitária Luiza Mahin.

O que as mulheres não esperavam era que um acidente traria mais dificuldade para a continuação das aulas. Logo depois de ser inaugurada, a laje construída desabou, mas não causou desânimo para elas.

"Eu me lembro que quando a gente acabou de bater a laje, umas 18h, eu já estava cansada, ouvimos o barulho. A laje caiu toda no primeiro andar. A gente colocou as mãos na cabeça e nos perguntamos o que íamos fazer. Essas mulheres não desistiram, fizemos tudo de novo", disse.

"A gente foi para a comunidade de novo, arrecadamos dinheiro para os materiais, fizemos aquele feijão e batemos a laje de novo. A gente não desistiu".

Pai de aluno ajudou em leilão

As coordenadoras pedagógicas contam que no início da escola, os professores trabalhavam de forma voluntária e com o passar do tempo, passaram a receber uma bolsa, através do apoio financeiro da ONG.

Entretanto, em 1993, uma das professoras que se desligou da instituição, decidiu acionar a escola na Justiça, pedindo os tempo de trabalho. Por causa da ação, as administradoras da escola tiveram que leiloar cadeiras, armários e os outros móveis usados pelos professores e alunos.

O que evitou que elas tivesse que retomar o trabalho do zero foi a presença do pai de um dos alunos no leilão, que arrematou todos os objetos e devolveu para a instituição.

"Foi a nossa alegria, a nossa salvação. Eu não digo nem salvação, porque a gente ia começar do zero, mas a gente não precisou fazer isso, a gente continuou na luta. A gente ia ter que começar do zero, com as crianças sentadas no chão, mas não íamos desistir", disse Jandayra.

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

Desafios da pandemia

Escola na Bahia aposta há mais de 30 anos em educação antirracista na construção de uma nova geração de cidadãos — Foto: Arquivo Pessoal

A pandemia do novo coronavírus impôs dificuldades para o ensino na Escola Comunitária Luiza Mahin. A saída encontrada pela coordenação pedagógica foi fazer pequenos vídeos de aulas e divulgar por um aplicativo de mensagens e disponibilizar atividades para que os pais peguem na escola e façam com os filhos em casa.

"Planejamos os vídeos curtos, porque sabemos que existem casas que só tem um celular. O conteúdo tem que ser claro e objetivo, para que os pais assistam com os filhos. Não poderíamos fazer as aulas ao vivo, porque os pais precisam sair para trabalhar e sabemos que a maioria dos alunos só podem assistir o vídeo à noite, por falta de tecnologia mesmo", disse Valmira Santos.

A coordenadora de pedagogia afirma que acredita que a estratégia tem alcançado cerca de 80% dos alunos matriculados.

"É um esforço que a gente faz para que nossos alunos não fiquem sem atividades. Tem uma mãe que vem de Cajazeiras e pega os exercícios. Isso nos faz muito felizes, porque vemos que o ensino tem agradado, que tem pais assistindo com os filhos e que podemos continuar mandando os vídeos", contou.

Já Jandayra Bonfim alertou para o desafio de manter os professores motivados durante a pandemia. A escola faz reuniões constantes e terapia coletiva com os funcionários.

"Não podemos abandonar os professores neste momento. Não é só passar as atividades, temos todo um cuidado para que o legado da escola continue prevalecendo em tudo que for ensinado e que o trabalho seja prazeroso em tempos em que a ansiedade vem maltratando as pessoas", disse a coordenadora.

O legado antirracista é o grande marco da Escola Comunitária Luiza Mahin, que apesar das dificuldades impostas pela pandemia, enxerga uma luz no fim do túnel.

"Manter uma escola resistente há mais de 30 anos em um mundo que as coisas mudam constantemente. A escola vai continuar trabalhando nessa vertente, porque é o que acontece na nossa volta. A gente traz os nossos referenciais da cultura afro-brasileira como parte essencial nosso currículo", finalizou Valmira Santos.

A instituição conta com parcerias da CAM, do CAMA, Espaço Cultural de Alagados, Rede Reprotai e escolas como União e 6 de Janeiro

Lei federal 10.639/2003

Essa legislação foi uma conquista do movimento do negro, cuja luta acontece pelo menos desde os anos 1930, com a Frente Negra Brasileira e figuras como o professor Abdias do Nascimento, indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2010.

Ela alterou a lei maior da educação no Brasil, a Lei das Diretrizes e Bases (LDB), com a inclusão da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, públicas e privadas, de ensino fundamental e médio.

No ano seguinte, em 2004, o Ministério da Educação (MEC) designou uma comissão, conduzida pela professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, para regulamentar essa lei em um documento que direciona sua aplicação.

Basicamente, esse parecer estabelece que a abordagem do assunto deve se dar não apenas em uma disciplina de História e Artes, ou durante uma semana comemorativa, mas deve atravessar o currículo e a prática, com um esforço permanente pelo fim do racismo dentro das escolas.

Em dezembro de 2017, o MEC aprovou uma nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que incluiu as diretrizes da lei 10.639, e as escolas públicas e particulares deveriam adequar seus currículos até início do ano letivo de 2020.

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