Brasil Educação Educação 360 Educação 360

Educação 360: Combate a crise climática, racismo e desigualdade de gênero é missão para a educação no pós-pandemia

Para pensadores, volta às escolas será hora de catarse coletiva para expor feridas e aprender sobre a condição humana
Os debatedores Sidarta Ribeiro, Viviane Mosé, Ailton Krenak e Renato Janine Ribeiro, com mediação do colunista da Época Guilherme Amado Foto: Reprodução
Os debatedores Sidarta Ribeiro, Viviane Mosé, Ailton Krenak e Renato Janine Ribeiro, com mediação do colunista da Época Guilherme Amado Foto: Reprodução

RIO — Muito tem se perguntado como a pandemia alterará os rumos da Humanidade, mas existe outra que se faz igualmente importante: o que os próprios seres humanos farão para operar as mudanças de que tanto precisam para viver melhor? Diante de intempéries que colocam em risco a sobrevivência da espécie e o planeta, tais como as mudanças climáticas e a covid-19, pensadores latino-americanos se uniram ao Educação 360 Internacional para propor reflexões às comunidades escolares, que têm um papel-chave na construção de um novo projeto ético para o futuro. As barreiras que fragmentam a sociedade brasileira, desde a desigualdade racial no ensino básico à reduzida presença feminina na comunidade científica, também entraram na pauta dos debatedores que desenharam um ideal de país mais igualitário para o pós-crise.

Educação 360 : Escolas e famílias são chave para amortecer impacto da pandemia

Realizado pelos jornais O GLOBO, Extra e Valor Econômico, o Educação 360 Internacional promoveu debates, conversas e palestras durante três dias, de 29 de setembro a 1 de outubro. O evento contou com patrocínio da Fundação Itaú Social e AZ Escolas em Rede, apoio do Instituto Unibanco e apoio institucional da TV Globo, Unicef, Unesco, Futura e Fundação Roberto Marinho.

Educar para cuidar dos humanos e do planeta

Depois de um dia focado nas desigualdades reforçadas pela pandemia e outro voltado à promoção da tecnologia como aliada do ensino, o último dia desta maratona começou com um inspirador pronunciamento do educador e filósofo colombiano Bernardo Toro. Ele fez um apelo para que educadores estejam conscientes da sua responsabilidade na formação capaz de lidar com aqueles que considera os dois maiores desafios contemporâneos: a ameaça à democracia e a crise climática.

Segundo dia : Do 'chão da escola' ao 'novo normal', educadores compartilham experiências para aliar tecnologia e ensino

Para isso, argumenta, é necessário que os currículos escolares sejam reestruturados para que crianças e jovens aprendam a cooperar para solucionar problemas com base numa ética do cuidado na sua relação com os outros e com a natureza.

— A nossa grade curricular está sob um paradigma: a acumulação do poder e do sucesso. Todo o sistema educacional da América Latina, e o Brasil não é exceção, nos ensina que é importante ter sucesso, ter poder, acumular bens — considerou Toro, afirmando que este mesmo paradigma trouxe novos adventos tecnológicos mas, também, degradação ambiental e desigualdades. — Não podemos brincar, achando que somos mais importantes do que a natureza. A natureza é maior do que nós. Esta é uma forma de pensar, uma mentalidade, uma forma de sentir que precisamos colocar para a próxima geração.

Uma 'catarse coletiva' na volta às escolas

Em seguida, um heterogêneo grupo de escritores se juntou para o debate "O que será do amanhã? Reflexões sobre nosso futuro pós-pandemia", do qual participaram o filósofo Renato Janine Ribeiro; o líder indígena Ailton Krenak; a poeta, filósofa e psicanalista Viviane Mosé; e o neurocientista Sidarta Ribeiro. A conversa se centrou em dois futuros diferentes que aguardam educadores, alunos e gestores: primeiro, um ainda indefinido momento de retorno às aulas presenciais, e, a longo prazo, uma potencial nova era para a formulação das relações humanas.

— O primeiro momento é dizer: venham, estamos juntos e vamos fazer algo juntos pelo mundo. Temos que ensinar as crianças a vida, e a vida implica em sofrimento — disse Mosé, ponderando que 2020 não precisa ser um ano perdido, como acreditam muitos, mas sim de oportunidade para uma conscientização sobre a fragilidade humana, apesar de todo o sofrimento dos últimos meses. — É um momento de aprender coisas humanas, e aprendemos coisas humanas quando estamos em restrição.

Por sua vez, Janine traçou duas prioridades para o planejamento da volta às aulas: primeiro, a garantia de condições físicas que possam oferecer segurança para as comunidades escolares, tais como a oferta de materiais de higiene e limpeza, e, segundo, uma preparação para levar a cabo uma verdadeira "catarse coletiva", em suas palavras, para colocar sobre a mesa todo o sofrimento sentido por alunos e professores durante a pandemia.

— Se a gente não fizer as pessoas dizerem os pavores e medos que tiveram, isso vai ficar trabalhando dentro delas. Haverá pessoas que carregarão por toda a vida esse trauma — afirmou o ex-ministro da Educação. — Antes de tudo, temos que dar voz ao sofrimento para que possa ser superado.

Já Ribeiro expressou preocupação com a desvalorização da ciência no mundo contemporâneo, sobretudo que "a gestão da pandemia não esteja seguindo o que a OMS fala", em sua avaliação, uma vez que a crise atual tem o potencial de transformar a educação para lidar, a longo prazo, com a ameaça à existência humana também imposta pela crise ambiental.

Passo para trás : Entidades veem retrocesso na política de educação especial de Bolsonaro

—  Muitas populações estão de joelhos, prostradas e destruídas. Falamos aqui de uma urgência sobre esse fim do mundo iminente, que nos alcançou a todas e todos em 2020 por causa da pandemia. É, portanto, uma oportunidade enorme.

Levando uma perspectiva própria dos saberes indígenas ao debate, Krenak ressaltou que povos tradicionais têm muito contribuir a estes esforços de conscientização por meio da educação:

— Eu não sei o que vai acontecer com as pandemias, mas sei que a Humanidade vai se pegar a pedrada nos próximos trinta anos — disse, numa referência lúdica ao efeito das mudanças climáticas sobre as populações humanas até 2050. — É interessante ouvir quem viveu 500 anos de guerra para ouvir o que estão pensando sobre o que vai acontecer. Como sempre vivemos sob condição de existência ameaçada, sou otimista. Fiz um caminho de acreditar que a esperança se apoia no conhecimento.

Incentivo às futuras cientistas do Brasil

Duas cientistas que ganharam notoriedade no mundo acadêmico durante a pandemia sucederam o debate para falar sobre o lugar da ciência no nosso mundo. A pesquisadora Jaqueline de Jesus e a professora Ester Sabino, ambas do Instituto de Medicina Tropical da USP, sequenciaram o genoma do novo coronavírus e, no Educação 360 Internacional, falaram a educadores sobre a importância de estar consciente sobre como a ciência está em toda parte e a todo momento, mesmo onde nem sempre conseguimos vê-la de primeira.

De Jesus lembrou que o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para alcançar outros países no desenvolvimento da ciência, sobretudo levando em consideração que existem apenas 200 mil cientistas no país. Ela também ressaltou que o corte de bolsas de estudo e de recursos para a ciência e a tecnologia tem tornado a vida de pesquisadores cada vez mais difícil.

Sem investimento : Destaque do Ideb, ensino médio deve sofrer corte de cerca de R$ 900 milhões

— Vamos sentir o impacto dessa redução de investimentos, sobretudo nas politicas públicas — disse a pesquisadora.

Já a professora Sabino contribuiu com reflexões sobre a importância de popularizar a ciência e torná-la mais atrativa e também acessível para a sociedade fora dos muros da academia. Para ela, é preciso mudar como o Brasil vê a ciência.

— Como a gente faz para a população entender melhor o papel da ciência? — considerou. — Vamos passar um difícil período agora, e vamos ter que repensar a ciência que a gente faz. Sinto medo pelos meus alunos sobre o que vamos fazer para que este momento não seja tão ruim e não tenha tamanho tão extenso.

Por enquanto, as duas pesquisadoras podem se orgulhar do símbolo de incentivo que os seus esforços produziram para meninas e mulheres com a ambição de serem cientistas também, na contramão da histórica reduzida participação feminina neste universo.

— Eu tenho recebido muitos feedbacks positivos de meninas que estavam pensando em desistir da carreira científica. Depois da divulgação de que o nosso grupo era majoritariamente composto por mulheres, elas acabaram se inspirando a voltar — contou de Jesus.

Educação ainda é 'falsa prioridade' no país

Para fechar a programação do Educação 360 Internacional de 2020, Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, se uniram para enriquecer o debate sobre educação focado no Brasil. O ministro Barroso, que é também professor universitário e se reconhece como um apaixonado pelo tema da educação, ressaltou que dentre os maiores desafios do país nesta área são a não alfabetização da criança na idade certa; a evasão escolar no Ensino Médio; e o déficit de aprendizado nos ensinos Fundamental e Médio.

Ele chamou ainda a educação de uma "falsa prioridade" no Brasil, defendendo a criação de um plano nacional suprapartidário para investir nesta área e torná-la uma força revolucionária e prioritária para o futuro que virá após a pandemia. O ministro também defendeu a despolitização do debate sobre a educação.

— É preciso que o magistério de ensino básico seja tratado como uma das principais profissões do pais, como de fato é. É preciso dar prestígio e distinção, além de boas condicoes de trabalho, para quem resolve se dedicar à educação basica — afirmou, complementando que a escola em tempo integral e a ênfase na educação infantil são também dois eixos cruciais para guiar novos investimentos.

Henriques concordou com a avaliação do ministro quanto ao lugar pouco valorizado da educação, afirmando que este precisa se tornar um projeto de sociedade e um "assunto do almoço de domingo" nas famílas brasileiras. Ele ressaltou ainda que as desigualdades pré-existentes do país — onde 42 a cada 100 crianças negras não terminam os estudos escolares, afirmou — são agonizadas pela pandemia, enquanto vivemos uma situação de racismo estrutural que se coloca no caminho da agenda da equidade que compreende a educação.

— É fundamental um novo contrato social que atue numa dinâmica mais sustentável, democrática a intolerante com o racismo — afirmou Henriques. — É missão da escola reduzir a desigualdade e criar a igualdade. Precisamos ter estratégia explícita de equidade e educação.