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'Economistas estão pensando em superávit, enquanto a favela continua lá', diz especialista

Mário Theodoro defende manutenção das cotas e afirma que a pandemia foi um catalisador de desigualdades no País

Por Douglas Gavras
Atualização:

Para o economista Mário Theodoro, de 63 anos, o baixo número de economistas negros em funções-chave no funcionalismo público ou na iniciativa privada reflete o racismo estrutural no País e acaba afetando a forma do Brasil de lidar com os desafios de criar políticas públicas mais efetivas. 

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"O racismo 'organiza' a sociedade, abre e fecha portas, dependendo da sua cor, no mercado de trabalho, nas prisões", diz Theodoro, que é pesquisador associado do mestrado em Política Social da Universidade de Brasília (UnB). O tema será um dos discutidos no evento online Diálogos Brasil-EUA: A questão racial em debate, nesta quinta-feira, dia 25. Serão dois blocos de discussões, às 10h30 e às 14h30, reunindo especialistas americanos e brasileiros.

Theodoro também é mestre pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor pela Universidade de Paris 1 - Sorbonne e membro-fundador da Abed (Associação Brasileira de Economistas pela Democracia). A seguir, trechos de sua entrevista ao Estadão.

Um dos poucos alunos negros na UnB dos anos 70, Theodoro comemora cotas. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Como era a realidade da faculdade de Economia quando você era estudante? 

Eu me formei em 1980. Devia ter 7 mil alunos na UnB e a gente conseguia contar o número de estudantes negros na mão. Eu tinha um colega que precisou parar os estudos para poder trabalhar. Ele tentou estudar à noite, mas, na universidade, disseram que a UnB era para classe média, não para pobre. Não era por acaso, era um projeto. Não tinha nenhum tipo de auxílio ou bolsa. E é isso o que o governo atual está tentando fazer agora. Querem tirar o pobre da universidade pública.

A universidade em que você estudou é muito diferente da UnB em que você dá aulas hoje? A política de cotas foi efetiva?

É uma outra universidade. Antes, a estratificação era muito clara. Hoje, muito em função das cotas, é uma outra universidade, que desafia os professores a debaterem a questão racial. Os alunos negros colocam questões em debate que os professores têm de responder. Há mais professores negros agora também, mas não muitos. Travamos uma grande luta ainda. Em áreas, como as ciências sociais, a representatividade é um pouco mais comum, mas é difícil estabelecer cotas para professor. O que se conseguiu é ter vagas direcionadas no mestrado e no doutorado - e isso pode aumentar o número de alunos negros que podem concorrer a uma vaga de professor lá na frente.

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O baixo número de economistas negros em funções de destaque no serviço público também leva a políticas públicas menos assertivas para os mais vulneráveis?

O Brasil tem uma questão racial latente e que é negada, em grande parte. O racismo não é um problema para muita gente no País, mas ele é. O racismo 'organiza' a sociedade, abre e fecha portas, dependendo da sua cor, no mercado de trabalho, nas prisões. Tudo isso se reflete nas ruas e é o resultado de um conjunto de constituições e regras que são baseadas no racismo. Mas muitos problemas nem são vistos como problemas. Uma favela para mim, por exemplo, é uma indignidade. Eu vejo as pessoas naquelas condições e acho indigno. É o tipo de coisa que a elite branca não percebe como um problema.

O Brasil se acostumou a ser desigual?

Sim. No fim da Segunda Guerra Mundial, teve fome na Europa. Em 30 anos, eles saíram dessa condição, pois era um problema também para a elite de lá. Quando a gente olha para o Brasil, vemos cinco gerações vivendo em favelas. E foi só nos anos 1980 que elas começaram a ter água encanada. Nossos economistas estão pensando em outras coisas: nas contas públicas, em superávit fiscal - e a favela continua como está. Esse tipo de coisa só acontece em uma sociedade racista. Por isso é importante ter pessoas que não sejam só brancas no setor público. E isso nem é só no poder público, conheço especialistas em pobreza que nunca subiram em uma favela. 

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O País avançou ou retrocedeu nos últimos anos, nesse aumento da representatividade?

Se a gente conseguir manter as cotas, avançaremos. Mas não é uma coisa linear, na medida em que se sedimenta um programa como esse, criam-se outras tensões na sociedade. Um grupo de pessoas negras vai passar a concorrer com pessoas brancas, que nunca quiseram essa concorrência. É a 'gente diferenciada' daquela moradora, que não queria uma estação de metrô em Higienópolis (bairro central de São Paulo). Essas pessoas não são bem-vindas por essa classe. Das cotas, não vai vir a melhor sociedade do mundo, vai ser uma sociedade com embates. Mas essas disputas são necessárias para ultrapassar essa chaga, que vem desde a escravidão. 

As cotas foram fundamentais para promover alguma mudança? 

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O governo, as instituições e as universidades acataram as cotas, como uma lei. Mas não teve muito programa de apoio, iniciativas para preparar a universidade. Por outro lado, essa juventude negra que entrou na universidade foi acolhida pelos movimentos negros, isso fez com que esses alunos criassem uma consciência crítica. O problema é que a lei de cotas prevê uma revisão no ano que vem.

A tendência é que o legado da pandemia seja de aumento das desigualdades. Muitas das conquistas de inclusão dos últimos anos podem ser perdidas agora?

A pandemia é um catalisador de desigualdades, até pela fragilidade institucional do País. O Brasil já era uma democracia para poucos, que funciona muito bem para os brancos e mal para os negros. Agora, por exemplo, vai começar a temporada de chuvas, vários barracos vão cair. A gente sabe que isso acontece todo ano e ninguém faz nada, pois o Estado é ruim para a maioria negra. Com a covid, quem tem hospital e renda consegue atravessar bem. Mas e quem não tem, faz como? As favelas estão preparadas para que as pessoas fiquem em casa? Se o pobre não trabalhar hoje, não vai comer amanhã. Dada a fragilidade social dessa grande maioria, quando tem uma tragédia como essa, da pandemia, ela se abate muito mais sobre as comunidades mais pobres. Tudo aumenta a desigualdade. Agora, como pensar em teto de gastos, como pelo menos 14 milhões de desempregados no País? É uma indignidade muito grande.

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