Brasil Antonio Gois

É justo reprovar alunos este ano?

Identificar as lacunas de aprendizagem será uma das tarefas mais importantes nos processos de retomada

Na maioria das redes de ensino, a suspensão das aulas presenciais já completou 75 dias. Como não há nenhuma perspectiva realista de que a retomada aconteça neste mês de junho, vamos em breve chegar a 100 dias de paralisação. Já sabemos, portanto, que os 200 dias letivos exigidos por lei (flexibilizados no contexto da pandemia por uma MP do governo federal) de fato não vão caber no calendário de 2020.

Secretarias de educação do mundo todo tiveram que tomar decisões difíceis. Não fazer nada durante a paralisação das aulas presenciais prejudicaria todos os estudantes e elevaria ainda mais o risco de evasão daqueles em situação mais vulnerável. A saída menos pior foi recorrer à aprendizagem remota. Na prática, porém, mesmo nos sistemas educacionais mais estruturados, o que estamos vendo são gambiarras de educação à distância, ou seja, soluções improvisadas e provisórias.

O prejuízo na aprendizagem, portanto, será inevitável, e mais acentuado entre os alunos mais pobres. Diante de uma adversidade externa tão intensa, outra decisão importante a ser tomada será o que fazer com os alunos que, ao final do ano letivo, não tiverem aprendido o que era esperado. Historicamente, a solução padrão do sistema educacional brasileiro nesses casos é recorrer a um remédio reconhecidamente ineficaz: a reprovação.

Já citei aqui na coluna, mais de uma vez, os estudos do pesquisador neozelandês John Hattie, publicados no livro “Visible Learning”. Ele fez uma síntese de mais de 800 meta-análises (estudos mais robustos por compilarem evidências de várias pesquisas) em educação e listou as ações de maior e menor impacto no aprendizado dos alunos. Para quem acredita em balas de prata educacionais, é frustrante constatar que a maioria delas, isoladamente, tem efeitos nulos ou muito pequenos. Algumas poucas, porém, chegavam a ter impactos negativos. Entre elas estava a reprovação. Como afirma Hattie no livro: “É difícil encontrar outra prática educacional em que a evidência científica é tão inequivocadamente negativa”.

Em tempos de debates rasos, a crítica ao abuso na reprovação às vezes é entendida como simples defesa de uma política de aprovação automática. O que importa, ao fim, é garantir condições de aprendizagem. No contexto da pandemia, com exceção dos jovens que estão no último ano do ensino médio, para os demais estudantes é possível planejar uma estratégia que inclua também o próximo ano letivo como parte do processo de recuperação dos prejuízos causados pela pandemia em 2020. Esta foi a solução adotada por vários dos sistemas educacionais do hemisfério Norte, onde as aulas estavam previstas para serem encerradas neste mês de junho.

Se, mesmo em situações normais, a reprovação de um aluno só deveria acontecer em casos extraordinários, neste ano, será necessário sermos ainda mais criteriosos. Isso não significa que os estudantes não devam ser avaliados. Identificar as lacunas de aprendizagem será uma das tarefas mais importantes nos processos de retomada. No entanto, se utilizarmos ao fim esses instrumentos apenas para separar quem vai progredir e quem ficará retido, estaremos cometendo uma enorme injustiça com as crianças e jovens que foram privados de suas oportunidades de aprendizagem.