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Professor da balé que superou preconceitos pode desistir da profissão por causa da pandemia

Paulo Salles, que dá aulas na Lona Cultural de Anchieta, enfrenta dificuldades financeiras e pensa em deixar de viver de arte
Professor da Lona Cultural de Anchieta, Paulo Salles não está conseguindo mais viver de arte Foto: Pedro Teixeira / Pedro Teixeira
Professor da Lona Cultural de Anchieta, Paulo Salles não está conseguindo mais viver de arte Foto: Pedro Teixeira / Pedro Teixeira

A vida de artista como ela é. Sem filtro, retoques ou glamourização. O bailarino Paulo Salles, de 21 anos, professor de dança da Lona Cultural Carlos Zéfiro, em Anchieta, é personagem de um retrato do atual cenário da cultura nacional. Um triste retrato, sobretudo para quem, como ele, tem origem humilde, vive em periferia, está longe dos holofotes da TV e não contabiliza milhões de seguidores nas redes sociais. No momento em que, devido à pandemia de Covid-19, o palco é local proibido, este jovem negro, que enfrenta preconceitos diários para garantir o direito de exercer sua profissão — como ter sido impedido de dar aulas numa igreja evangélica por ser homossexual —, faz do Caderno Tijuca + Zona Norte sua plateia.

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Salles divide com o público leitor não a delicadeza dos passos de balé, mas a dureza de ter deixado para trás o apartamento em que morava, em Madureira, por não conseguir mais pagar o aluguel. É quando as cortinas se fecham que se abrem janelas reveladoras sobre o quão difícil é ser um operário da arte no Brasil. Ainda mais se, além de todas as dificuldades já apresentadas, é preciso vencer o preconceito racial cotidiano.

Paulo Salles é professor de balé na Lona Cultural de Anchieta Foto: Pedro Teixeira
Paulo Salles é professor de balé na Lona Cultural de Anchieta Foto: Pedro Teixeira

— Eu me sinto muito humilhado por estar morando de favor na casa de um primo, até pelo que investi na minha formação de bailarino. Essa pandemia me mostrou que, infelizmente, para a grande maioria, não dá para viver de arte neste país. Se você não estiver na grande mídia, é quase impossível conseguir se sustentar. Eu me vejo obrigado a abandonar o balé como profissão. Mesmo antes desta crise, já convivia com constantes atrasos de salário, incertezas. Então, estou procurando outros caminhos — anuncia o jovem.

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Enquanto a dança corre sério risco de virar apenas um hobby, Salles planeja cursar fisioterapia e empreender.

Antes da pandemia, Paulo Salles com alunas na Lona Cultural de Anchieta Foto: Pedro Teixeira
Antes da pandemia, Paulo Salles com alunas na Lona Cultural de Anchieta Foto: Pedro Teixeira
O bailarino Paulo Salles pensa em cursar fisioterapia e abrir uma lanchonete Foto: Pedro Teixeira / Pedro Teixeira
O bailarino Paulo Salles pensa em cursar fisioterapia e abrir uma lanchonete Foto: Pedro Teixeira / Pedro Teixeira

— Eu me inscrevi no Enem e espero ser aprovado para fazer um curso que me ofereça mais possibilidades de trabalho. Quando tudo isso passar, penso em abrir uma lanchonete. Viver exclusivamente do balé virou um sonho distante — desabafa.

A razão pede com urgência que o bailarino Paulo Salles troque as sapatilhas por outro instrumento de trabalho. Já a emoção leva o professor da Lona Cultural Carlos Zéfiro a calçá-las. Mesmo sem um piso adequado para dançar em casa, nem barra de apoio para fazer os movimentos tradicionais do balé, o artista entra em cena, reinventa-se e ministra, do que jeito que dá, aulas on-line.

O bailarino Paulo Salles está pensando em fazer faculdade de fisioterapia Foto: Pedro Teixeira
O bailarino Paulo Salles está pensando em fazer faculdade de fisioterapia Foto: Pedro Teixeira

— É complicado porque eu não tenho a estrutura física necessária em casa para dançar, e os alunos, em sua maioria carentes, têm dificuldade de acessar a internet. Muitos não têm wi-fi, nem sequer um smartphone ou um computador. Como professor particular, abri mão das mensalidades, porque é um momento de dificuldade para todo mundo, e enfrento desafios para fazer este trabalho virtualmente. O meu conforto é que, mais do que professor e alunos, somos uma família — frisa o bailarino, que desde fevereiro está com salários atrasados na lona cultural, instituição que vive de repasses da prefeitura do Rio.

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A luta diária de Salles pela sobrevivência em meio à pandemia o levou a ter crises de choro e a se sentir quase sem forças para seguir em frente. Mas o desejo de mostrar seu talento e a convicção de que tem capacidade não permitem que o artista esmoreça. Resistir é rotina para quem tem o racismo presente em seu dia a dia.

— O preconceito nos cerca a todo instante. Recentemente, caminhava para ir ao mercado quando percebi que uma mulher, que estava dentro de um carro, me viu pelo retrovisor e imediatamente fechou a janela e escondeu o celular. Quando eu passei, ela abriu o vidro. Isso dói — desabafa, para em seguida recordar outro episódio de discriminação. — Há pouco tempo, entrei numa farmácia, e a gerente me perguntou o que eu queria lá, como se eu não pudesse estar ali para comprar algo. Outras pessoas estavam no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa do que eu, mas ela só se dirigiu a mim. É por isso que a gente precisa se manifestar, sim, contra o racismo. Mas sem vandalismo e, neste momento, mantendo o distanciamento social.

O bailarino Paulo Salles sofre com o preconceito racial e sexual Foto: Pedro Teixeira
O bailarino Paulo Salles sofre com o preconceito racial e sexual Foto: Pedro Teixeira

Mesmo quando está em sala de aula, o bailarino não escapa do preconceito, seja racial ou por sua condição sexual.

— Fui impedido de dar aulas numa igreja por ser gay. Isso é inaceitável, mas acontece. O fato de ser do sexo masculino também é uma questão no meio do balé. Muitos pais trocam as filhas, ou os filhos, de turma quando veem que o professor é um homem. Não dá para negar que o fato de eu ser negro também incomoda. A gente sente o racismo pelo olhar. Sinto que muitas pessoas brancas e que têm uma boa condição financeira evitam o convívio comigo por eu ser preto, pobre, morador de comunidade... Tudo isso é muito triste, mas levanto a cabeça e vou em frente — conta.

Salles sabe o que todos deveriam saber: vidas negras importam!

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