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Opinião|Duas tarefas fundamentais e urgentes da educação

No reino da pós-verdade triunfam narrativas delirantes que encontram nas disputas políticas um terreno fértil para florescer

Pouco depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA, vieram à tona versões, com ampla circulação na internet, que atribuíam à CIA a organização e execução dos atos a fim de criar o pretexto necessário para a intervenção norte-americana na geopolítica do Oriente Médio e controlar o fluxo do petróleo, um bem fundamental para a estabilidade da sua economia.

Em 2016, na eleição presencial dos Estados Unidos entre Hillary Clinton e Donald Trump, circularam notícias falsas que relacionavam Hillary a uma rede de prostituição e tráfico de crianças, com consequências negativas para a sua performance final.

Recentemente, a criação das vacinas contra a covid-19, no bojo da pandemia, provocou reações em todo o mundo e foram muito fortes no Brasil. Diversas suposições sobre seus efeitos perversos circularam e tiveram grande aceitação em parte da sociedade.

Os exemplos poderiam se multiplicar. Para finalizar, faço referência a um programa que foi veiculado em um canal do YouTube no dia 11 de novembro de 2023, com perfil à esquerda do espectro político, em que se debatia a guerra entre o Hamas e Israel. Eram dois debatedores, professor universitário e jornalista, e um mediador. No início do programa deram a sua versão sobre os acontecimentos do dia 7 de outubro em Israel, negaram a ação terrorista do Hamas e atribuíram a carnificina às próprias forças de segurança de Israel, que estariam interessadas em criar o caos e aprofundar o que chamavam de colonização israelense da Palestina.

Entre perplexo e incrédulo com o que acabara de ver e ouvir, pensei nas passagens da aventura narrada por Miguel de Cervantes em Dom Quixote de La Mancha, em que, por vários momentos, dom Quixote delira e não consegue ver a realidade sob seus olhos, acreditando estar encantado por alguma entidade.

Com razão, em 2016 o Dicionário Oxford elegeu a expressão “pós-verdade” a palavra do ano. No reino da pós-verdade triunfam narrativas delirantes que circulam pelas instituições educativas e de mídia, e que encontram nas disputas políticas um terreno fértil para florescer.

O que pode ser feito para minimizar o problema e evitar as suas consequências sociais e políticas nocivas? Sem dúvida, a imprensa tem um papel fundamental a desempenhar por meio do exercício da criticidade e do não alinhamento com narrativas fáceis e quixotescas. Este Estadão, em editorial do dia 16/11/2023 intitulado A responsabilidade do jornalismo, apontou para o desafio vital do jornalismo independente: o apego ao fato, mesmo que para isso seja necessário incomodar o público “pondo à prova suas crenças mais enraizadas”.

Mas há algo mais profundo a ser realizado e diz respeito à educação das crianças, adolescentes e jovens. As instituições educacionais não podem se eximir dessa tarefa ingente e que tem tudo a ver com o que delas se espera no momento atordoado do nosso tempo. Duas tarefas se impõem e estão contempladas nas competências gerais de número dois, sete e nove da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação básica.

A primeira diz respeito a um modo de convivência social marcado pela empatia e cooperação: “Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação (...) com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais (...) sem preconceitos de qualquer natureza.”

As sociedades democráticas se nutrem da tolerância, velha virtude já apregoada por John Locke e Voltaire nos séculos 17 e 18, e que hoje, em razão das polarizações ideológicas acentuadas e da fragmentação dos grupos e categorias sociais (as “tribos”), é fundamental para a vida social sadia e pacífica. As instituições educacionais devem exercitar os alunos desde cedo à convivência dos contrários e ao respeito à divergência.

A segunda se refere à habilidade de pensar criticamente com base em evidências e argumentar com lógica para defender pontos de vista. Hoje, essa competência é vital para minimizar os problemas trazidos pela credulidade, fake news e pós-verdade. Não é fácil pois “o homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade”, como afirmava o filósofo Francis Bacon no livro Novum Organum.

Em uma passagem memorável no livro Discurso do Método, de 1637, o filósofo René Descartes afirmava: “Eu sempre tive um imenso e intenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. Aprendi a não crer demasiado em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão”.

O que Descartes está propondo é a dúvida como atitude e a busca de evidências para fundamentar conclusões. São habilidades que precisam ser trabalhadas de forma consciente e programática nas escolas desde cedo. Nenhuma outra instituição social reúne as condições para fazer isso melhor que elas. Mas isso requer treino, pois a mente é hábil em criar firulas e em se deixar envolver por sentimentos e lógica simples. As emoções, a tradição e os hábitos são mais eficazes em estabelecer o que é tido por verdadeiro. Mesmo pessoas maduras caem com frequência em erros triviais. Como pôde a mente brilhante de Martin Heidegger flertar com o nazismo, ou Jean-Paul Sartre ficar por tanto tempo enfeitiçado pelo totalitarismo stalinista?

Carl Sagan, reconhecido cientista no campo da astronomia, no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios explica os perigos do obscurantismo e da mentalidade crédula. A certa altura ele elabora um “kit de detecção de mentiras” que pode muito bem servir de guia para a necessidade urgente de preparar cidadãos esclarecidos e diminuir os efeitos nefastos de um momento histórico que, por um lado, produz conhecimentos numa escala avassaladora, por outro, vivencia uma era de obscurantismo e delírios intelectuais incompatível com as possibilidades hoje à disposição de todos.

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DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Opinião por Isaías Pascoal