Do ponto de vista de saúde mental, como fazer um uso consciente dos games?

A reportagem do 'Estadão' ouviu diversos especialistas nas áreas da medicina e psicologia para avaliar a atual conjuntura e dar dicas aos pais; confira

PUBLICIDADE

Por Camila Tuchlinski
9 min de leitura

É inegável que os games preencheram uma lacuna importante após a pandemia, sobretudo no quesito interação social. Muitas crianças e adolescentes se conectaram através dos jogos online. Mas como usar a tecnologia de forma saudável, sem que esta seja a única forma de prazer possível no momento? Para esclarecer isso, foram entrevistados uma psicóloga especialista em Desenvolvimento, uma neuropsicóloga e um psiquiatra. Confira as opiniões abaixo:

'Games não são vilões, nem mocinhos', explica a psicoterapeuta infantil Tauane Gehn. Foto: Kai Pfaffenbach/Reuters

Tauane Gehn, psicoterapeuta infantil e doutora em Psicologia do Desenvolvimento

Quais são os efeitos mentais do uso, excessivo ou não, de games por crianças?

As pesquisas indicam efeitos diversos do uso excessivo de telas em crianças e adolescentes, como impactos nos índices de obesidade, problemas de sono, atrasos no desenvolvimento da linguagem em crianças pequenas, aumento da reatividade emocional e da agressividade. A literatura científica também aponta uma correlação negativa entre tempo de tela e a qualidade da saúde mental - ou seja, em crianças e adolescentes que passam mais tempo frente às telas, tem-se observado pior rendimento acadêmico, problemas relacionados à autoestima, piora nos sintomas de depressão e ansiedade.

Além dos efeitos citados, o uso de jogos eletrônicos pode piorar problemas atencionais. Também há efeitos específicos relacionados ao conteúdo dos games. Sabe-se, por exemplo, que os violentos aumentam pensamentos, sentimentos e comportamentos agressivos. Além disso, ao dessensibilizar os usuários para a violência, os jogos podem diminuir demonstrações de empatia.

Esses efeitos vão depender da cada faixa etária?

Continua após a publicidade

O uso de tela está associado a efeitos que independem da faixa etária da criança (obesidade, problemas de sono, aumento da reatividade emocional). Porém, sabe-se que, em diferentes idades, a criança aprende repertórios distintos.

Na primeira infância, sobretudo nos dois primeiros anos, é bastante importante, por exemplo, que a criança seja exposta a estímulos sensoriais variados e possa explorar fisicamente o mundo. Com as telas, ela perde, pelo menos por aqueles instantes, a possibilidade de interagir com o mundo de forma rica e variada. Além disso, para o desenvolvimento da linguagem e da socialização, é importante que haja troca - ou seja, que as pessoas respondam de forma específica e individualizada aos comportamentos da criança, dando a ela também a oportunidade de reagir a cada expressão/fala de seus interlocutores.

Quando pensamos no uso de telas/games, temos vídeos pré-programados que não cumprem a função de promover uma interação de qualidade. Adicionalmente, a associação entre severidade dos sintomas de depressão/ansiedade e tempo de tela é ainda mais forte quando estamos falando de crianças menores. Conforme a criança ganha mais repertório, os jogos se complexificam e surgem novas possibilidades de problemas, tais como o ciberbullying.

Alguns jogos podem ter efeitos cognitivos positivos, como raciocínio, estratégia e outros?

Com certeza! Games não são vilões, nem mocinhos - seu impacto vai depender da forma como ele é usado, ou seja, com que frequência, como o jogo é feito, qual é seu conteúdo, em que contexto é jogado. Inclusive, a depender da forma como o jogo é feito, seus mecanismos podem potencializar reações de prazer e diminuir reações de frustração, de forma que sejam excelentes recursos para o início do ensino de habilidades que, de outra maneira, seriam difíceis para as crianças/adolescentes. Dito de outra forma, os games podem diminuir a aversividade e aumentar o prazer do processo de aprendizagem de alguns repertórios.

Com relação ao conteúdo dos jogos, há games que promovem o aumento dos exercícios físicos, como os efeitos do Pokemon GO, outros que oferecem ensino de habilidades educacionais específicas (raciocínio lógico, vocabulário, etc) e aqueles pró-sociais, que proporcionam ensino de empatia e comportamentos sociais adequados.

Na pandemia, os games servem como válvula de escape de pais e filhos. Qual a avaliação que você faz sobre isso?

Continua após a publicidade

Na pandemia, os games se tornaram a principal fonte de socialização das crianças e adolescentes com seus colegas. Retirar completamente o uso de jogos eletrônicos pode aumentar o isolamento social ao qual as crianças estão expostas. As recomendações que tínhamos sobre tempo de exposição à tela precisaram ser revistas frente a isso, mesmo porque, em geral, o tempo das aulas online já transcende o limite máximo diário que era indicado antes da pandemia.

Ao mesmo tempo, os pais estão sobrecarregados e em sofrimento, tendo que dar conta, simultaneamente, do trabalho, da casa e do cuidado dos filhos, sem a rede de apoio que antes tinham (escolas, funcionárias, avós). Os games, nesse sentido, às vezes podem surgir como um “respiro”, permitindo que a criança se distraia e que os pais possam equilibrar outros pratos. Na grande maioria dos casos, está todo mundo fazendo o melhor que pode.

Poderia dar um conselho para jovens e pais sobre o excesso de consumo de games?

Orientações radicais, por exemplo, “proíba seu filho de usar jogos eletrônicos”, tendem a não serem seguidas por mais do que alguns poucos dias. O ideal, nesse sentido, é pensar em redução de danos. Há algumas condutas que podem ajudar:

  • Restringir o uso de games a um local específico da casa, de preferência que não seja o quarto da criança.
  • Combinar com as crianças/adolescentes horários específicos para o uso.
  • Evitar jogos violentos.
  • Não jogar durante outras atividades, tais como comer e assistir às aulas.
  • Evitar jogar nas horas anteriores a dormir.
  • Estabelecer acordos sobre deveres e direitos - ou seja, determinar quais são os deveres que devem ser cumpridos para que o acesso aos games sejam liberados.
  • Monitorar e conversar com a criança a respeito das trocas sociais estabelecidas durante os jogos.
  • Fortalecer as relações familiares, de forma a diminuir a probabilidade de que o game seja utilizado como fuga do contato dentro de casa e a mostrar para a criança/adolescente que o mundo fora das telas vale a pena.

Outra questão importante é que, na pandemia, os conflitos familiares têm aumentado bastante por conta do uso de games. Na hora dos pais estabelecerem o limite, a casa pode se tornar um verdadeiro campo de guerra. As ferramentas de controle parental, nesse sentido, têm sido muito úteis, diminuindo o estresse dos pais na hora de colocar o limite e aumentando as chances de que os filhos cumpram os combinados. Tratam-se de ferramentas que podem regular o tempo de uso, bem como a amplitude de acesso das crianças/adolescentes aos componentes do jogo/computador/videogame, retirando dos pais a necessidade diária de fazer essa mediação.

Especialistas explicamcomo usar a tecnologia de forma saudável, sem que esta seja a única forma de prazer possível no momento. Foto: Benoit Tessier/Reuters

Continua após a publicidade

Gisele Cortoni Calia, neuropsicóloga

Quais são os processos mentais envolvidos durante uma partida online?

Os games não são inócuos e exigem o uso de habilidades mentais específicas, ou seja, têm um efeito sobre o cérebro, mas não necessariamente prejudicial. As crianças e adultos usam bastante atenção concentrada, memória operacional, controle inibitório, que são funções cognitivas fundamentais para a aprendizagem em geral. Agora, o lado prejudicial do uso em excesso e só usar o game como a única forma de obter prazer, divertimento e aprendizagem é a falta de afetividade que eles trazem, por mais que possam trabalhar emoções, ainda assim, é intermediada pelas telas, pela tecnologia, então, não é atividade socioemocional. Mesmo que esteja jogando com outro colega, mesmo que sejam na mesma sala, isso não substitui a força de uma relação presencial. Tem um aspecto ainda pouco discutido que é o excesso de competitividade: “passei da fase, não passei de fase”. Esse excesso de excelência, de aprimoramento, também não são tão saudáveis.

O ato de jogar pode trazer algum ganho emocional?

Aprendizagem efetiva sempre traz algum tipo de recompensa mental, prazer. Nos games, ela se dá de forma muito eficiente. Faz a criança se sentir poderosa, capaz de conquistar coisas, a autoestima dela sobe. Então, ela busca fases difíceis e se esforça mais. Com isso, consegue novas estratégias para resolver os problemas.

Qual avaliação faz sobre o uso de jogos durante a quarentena?

As crianças têm, na sua essência, a 'válvula de escape’ principal que é o brincar. Para elas, é importante para o desenvolvimento total, afetivo-cognitivo. Na brincadeira, a criança simula situações da vida real, mas sem o peso das consequências. Por exemplo, ela pode brincar de fazer comidinha sem ter a preocupação real de queimar. Então, ela está exercitando a fantasia e realidade. Na pandemia, o brincar também foi afetado, como tudo. Assim como a reunião com os pais, a escola, a atividade foi para as telas. Já que essa é a opção, que seja lúdico, com os pais participando. Os filhos precisam ver os pais em momentos relaxados, porque o que não nos falta é motivo de preocupação. E isso pode trazer muita esperança para a criança entender que essa fase vai passar.

Continua após a publicidade

'Cerca de 3% dos jogadores são considerados dependentes', afirma opsiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

Rodrigo de Almeida Ramos, psiquiatra

Poderia nos dar exemplos de quais comportamentos crianças e adolescentes têm diante do excesso de games?

Estudos em neurociências demonstram que o uso excessivo de jogos acompanha o conjunto de sintomas de dependência química como sensação de recompensa inicial, tolerância ou necessidade de aumentar o período de consumo para se obter a euforia. O alcoólatra, por exemplo, organiza seu dia tendo o álcool em mente. O jogador compulsivo passa o dia pensando em que horas ele volta ao joystick. O problema é tal que a Organização Mundial de Saúde, na 11ª edição da sua Classificação Internacional de Doenças, incluiu dependência de games oficialmente como uma doença. Por outro lado, estudos recentes têm mostrado vantagens que os games proporcionaram aos jovens na pandemia, sobretudo no controle da ansiedade, estresse e depressão. Tem-se verificado inclusive benefícios cognitivos aos jovens como aumento na capacidade de concentração.

Quando pode ser considerado um vício?

Consideramos vício ou dependência de jogos quando o indivíduo tem prejudicada sua habilidade de evitar iniciar um jogo. Tecnicamente chamamos isso de impulsividade. Alguns sinais:

  • Dificuldades de controlar a frequência, intensidade e inaptidão para se encerrar ojogo;
  • Domínio da prática do game sob qualquer outra atividade da vida do indivíduo. (Certa vez, tive um paciente que mantinha um balde no quarto, próximo ao aparelho, para suas necessidades fisiológicas. Assim, ele evitava ir ao banheiro que ficava a poucos passos dali);
  • Continuação e intensificação do hábito, mesmo com as consequências negativas que ele proporciona como baixo rendimento escolar e desemprego;
  • Irritabilidade;
  • Isolamento social com comprometimento de relações frente a frente, uma vez que todo universo do indivíduo passa a ser virtual.

Continua após a publicidade

Teremos uma geração de jovens diferente, já que os games servem como válvula de escape de pais e filhos? É difícil dar uma resposta tão generalista, mas certamente os jogos terão um papel central no comportamento das gerações futuras. Afinal, com eles, as relações entre pais e filhos ficam menores. Os jovens tendem a ficar isolados no quarto, interagindo com pessoas que fogem ao controle dos pais. Adultos, com razão estressados pelo ritmo de vida que temos hoje, tendem a delegar aparelhos eletrônicos para os filhos para conseguirem tranquilidade.Além disso, os jovens desenvolvem sua capacidade de comunicação apenas virtualmente e tendem a se inibir muito no contato face a face.

Como é feito o tratamento com crianças e adolescentes viciados em games?

Cerca de 3% dos jogadores são considerados dependentes. O tratamento é multidisciplinar. No caso da psiquiatria, o médico indica remédios para o controle do comportamento impulsivo, para o humor irritado e para o desconforto que o paciente sente quando afastado do jogo. Psicologicamente, avalia-se o que levou o indivíduo a centrar sua vida em algo tão artificial. O que está delegando afetivamente para os jogos? Timidez? Medo de enfrentamento? Fantasias? São temas que têm que ser pesquisados e tratados.

Existem algumas medidas preventivas?

Eu costumo dizer que o maior problema dos jogos não são eles em si, mas o quarto. A larga maioria das pessoas jogam isoladas e lá ficam o dia inteiro, alimentando-se mal, interagindo inadequadamente com os outros, evitando tomar sol etc. A primeira medida preventiva é estabelecer um limite de, no máximo, três a quatro horas por dia, no jogo. Isso deve ser acordado com a criança. Na sequência, devemos pensar em fazer esportes. Crianças e adolescentes saudáveis têm que praticar esportes, individual ou em conjunto. E terceiro, atividades coletivas, como atividades artísticas ligadas ao teatro ou música. Criança ou adolescente passando a maior parte do dia no quarto já é um erro grave, jogando é um erro duplo, porque pode gerar um comportamento de dependência. Jogar até é bom, porém, demais é doença.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.