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Disque 100: manual criado por ministério de Damares prevê denúncias 'por ideologia de gênero'

Especialistas apontam que mudanças na principal central de denúncias de violações dos direitos humanos possibilitaram episódios como o que aconteceu em escola de Resende
Damares Alves é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Foto: Adriano Machado/Reuters / Reuters
Damares Alves é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Foto: Adriano Machado/Reuters / Reuters

RIO - Um novo manual para orientar o tratamento das mensagens recebidas pelo Disque 100, principal canal de denúncias de violações dos direitos humanos do país, abriu a possibilidade para queixas sobre 'ideologia de gênero' como motivação de violações de direitos contra crianças. A classificação foi inserida no Manual de Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, lançado em abril deste ano pelo Ministério Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado por Damares Alves, e abre espaço para o acolhimento de denúncias como a que levou o diretor de uma escola em Resende, no Rio, a ser intimado a depor na polícia, há poucas semanas. Segundo texto da intimação, Paulo Henrique Nogueira, diretor da Escola municipal Getúlio Vargas, deveria dar explicações às autoridades sobre o fato de professores de sua institutição "promoverem o comunismo e a ideologia de gênero" nas aulas.

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— Esse manual é uma grande monstruosidade. Tinha que ser suspenso — defende Sônia Correa, uma das diretoras do Sexuality Policy Watch (SPW).

O manual divide os tipos de violação em classes, subclasses e espécies, pelas quais os atendentes do Disque 100 classificam as denúncias recebidas. O documento também lista as motivações que levaram às violações de direitos. Entre elas, estão, por exemplo, razões como idade, etnia, orientação sexual e ideologia de gênero.

Na avaliação de Marco Prado, pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG, o canal foi alterado para criar um fluxo de denúncias contra professores.

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— É um fluxo de criminalização de pessoas. Com isso, o ministério está constituindo uma ilegalidade, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) já definiu que ideologia de gênero não existe — afirma.

Segundo ele, o ministério utiliza um dispositivo genérico de uma lei de proteção à criança, que fala em "violência institucional", para representar a suposta violação de direito da escola contra o estudante.

Em  abril desse ano, o ministério chegou a promover o Fórum Nacional Sobre Violência Institucional Contra Crianças e Adolescentes. Participaram do encontro políticos de extrema-direita, como a deputada Chris Tonietto, que palestrou sobre “A desconstrução da identidade promovida pela ideologia de gênero”.

— O encontro foi feito para explicar a violência institucional como uma prática da ideologia de gênero, que traria danos emocionais e, portanto, o estado teria que intervir criminalizando os professores — explica Prado.

Fernanda Moura, pesquisadora da Frente Nacional Escola Sem Mordaça, ressalta um outro lado do problema que é a polícia acolher e levar adiante tais tipos de denúncia, mesmo sabendo que não há crime.

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— Ideologia de gênero não existe, mas foi incluída no manual. Isso possibilitou que essa denúncia fosse aceita e que, daqui para frente, várias outras possam ser recebidas e acatadas como se fosse um crime real — afirma a pesquisadora, que diz que o termo virou uma espécie de "espantalho para meter medo nas pessoas".

— Basicamente, eles podem dizer que qualquer coisa é ideologia de gênero: casamento homoafetivo, uso de banheiro por pessoas trans de acordo com o gênero com o qual se identificam, o debate sobre descriminalização do aborto, discussão sobre gênero e sexualidade na escola... O que importa é inventar uma suposta ameaça dos "comunistas" contra a família (no singular) e as crianças — explica.

Outra categoria que chama atenção dos pesquisadores é o tipo de violação ao chamado "Livre Exercício do Poder Familiar". De acordo com o texto do manual, é tarefa da família a "formação moral, educacional e religiosa de crianças e adolescentes" e "a mera tentativa de o Estado imiscuir-se em assuntos da órbita privada e familiar dos indivíduos já se configura em grave violação de direito".

Dados reunidos

Junto com o manual, o ministério também refez as categorias do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, portal que reúne informações das denúncias realizadas através do Disque 100 e do Disque 180, canal específico para combater violência contra a mulher.

Nele, é possível saber quantas denúncias foram feitas por cada motivação ou tipo de violação listada no documento. Desde janeiro desse ano, foram reportadas quase 28 mil denúncias em razão de condições físicas, sensoriais, intelectuais ou mentais. No entanto, as categorias em razão da orientação sexual e ideologia de gênero estão juntas, o que impede saber quantas foram feitas por cada uma dessas motivações.

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—  No manual, tem a explicação do que é a motivação em razão de orientação sexual, que seria homofobia, mas não define o que é a motivação ideologia de gênero. Existir isso na taxonomia da denúncia é um completo absurdo. Estar junto de orientação sexual é outro absurdo completo  — afirma Prado.

Procurado, o MMFDH não respondeu aos questionamentos do GLOBO, nem explicou de que forma a denúncia contra a Escola municipal Getúlio Vargas, de Resende, foi registrada.

A notificação afirma que o colégio "está expondo adolescentes aos conceitos comunistas, induzindo sua ideologia política. Além de também pregar ensinamentos de ideologias de gênero". O texto também afirma que o "denunciante alega que a responsabilidade de direcionar a conduta dos jovens pertence unicamente aos pais e não a escola".

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Procurada, a 89ª Delegacia de Polícia Civil do RJ (Resende) afirmou que a denúncia foi feita através do Disque 100 e que. logo após os esclarecimentos dados pelo diretor da escola, a apuração foi suspensa.

Professor titular de Direito Constitucional da UERJ, Daniel Sarmento explica que não há crime a ser investigado pela polícia:

—A liberdade de expressão se aplica às escolas. O supremo decidiu isso várias vezes, inclusive quando declarou o escola sem partido inconstitucional. É um problema muito grave, né? Temos o Enem com menos alunos, pandemia em que as crianças ficaram sem estudar por falta de aceso à internet, e a preocupação é essa? — critica.