Por Milena Castro*, G1 DF


Ariadne Ribeiro na Parada do Orgulho LGBTQIA+, em imagem de arquivo — Foto: Arquivo pessoal

Identificada como menino ao nascer, a pesquisadora Ariadne Ribeiro, de 40 anos, iniciou, desde criança, uma trajetória de luta contra o preconceito e buscou o direito de ser mulher. Nessa trajetória, passou pela violência, pelo diagnóstico de HIV e pelo encontro do próprio propósito de vida.

Atualmente, Ariadne é assessora do programa UNAIDS, da Organização das Nações Unidas (ONU). Como se por obra do destino, ela trabalha com ações voltadas para pessoas em situação de exclusão e vulnerabilidade social. Anos atrás, ela se encontrava em uma realidade parecida com a de quem ajuda.

"Eu busco ser um espelho positivo para as pessoas, e não escondo que sou uma mulher trans. Tento ser uma referência para outros que foram marginalizados e excluídos do seio familiar, do trabalho e que tiveram as oportunidades cerceadas em função de ser quem são. Eu quero que essas pessoas olhem para mim e tenha alguma esperança", diz Ariadne.

A moradora do DF é uma das oito personagens que compartilharam as jornadas de vida com a equipe do especial "Falas de Orgulho", em homenagem ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, que será exibido pela TV Globo nesta segunda-feira (28), após a novela “Império” (confira aqui o trailer).

Em entrevista ao G1, Ariadne conta os principais desafios de ser uma mulher transgênero no Brasil.

Sexo biológico errado e o RG

Ariadne Ribeiro no Lago Paranoá, em Brasília — Foto: Arquivo pessoal

Ariadne nasceu em 1981 e, mesmo tendo sido identificada como menino, não se via dessa forma. "A minha mãe tem lembranças que, desde os dois anos de idade, eu já me afirmava como menina", conta.

Para ela, assumir o gênero feminino não foi um desafio, pelo contrário, foi liberador. "Era um processo doloroso tentar suprir as expectativas da sociedade, porque dentro de mim era muito natural ser mulher", lembra.

Aos 13 anos, em 1994, quando foi fazer a primeira Carteira de Identidade, ela preferiu criar uma assinatura com o nome Ariadne Ribeiro para constar no RG. Mas, na frente do documento, ficou o nome de batismo, masculino.

A alteração oficial só veio em 2009. Aos 28 anos, Ariadne fez uma cirurgia de mudança de sexo no Hospital das Clinicas, em São Paulo. O término da transição permitiu a troca o registro civil mas, para isso, ela teve que ficar nua na frente de um médico perito.

"Na época, foi bastante constrangedor, porque eu precisei tirar a roupa e mostrar a minha vagina para ele atestar", diz.

Violência por ser quem é

Ariadne Ribeiro — Foto: Arquivo pessoal

Também foi aos 13 anos que Ariadne precisou mudar de casa, em função do preconceito. Ela conta que as brigas com a mãe e o padrasto eram constantes, "por causa do jeito afeminado que tinha".

Para ficar longe do ambiente de conflito, ela foi morar com a avó materna, Neusa Laporta. A avó, não só deu apoio, como também ajudou a então adolescente a entender o que era identidade de gênero.

Por outro lado, foi nesse período que a violência física começou a fazer parte da vida de Ariadne. Ela era constantemente espancada na escola e, por conta disso, abandonou os estudos no ensino médio.

"Era uma época em que a gente era culpada por apanhar. Foi um período bem difícil", lembra Ariadne.

Com 18 anos, ela passou por mais um momento desafiador. A avó morreu, vítima de um câncer. Naquele momento, Ariadne lembra que ficou sem qualquer apoio. Ainda de luto, a pesquisadora passou por uma violência que deixou marcas para a vida toda.

"Fui em um bingo e fiquei conversando com um ex-namorado da minha avó. A gente estava chorando muito e ele me dando bebida. Quando sai de lá, uma pessoa começou a me seguir. Essa pessoa me bateu e me levou para um terreno baldio, onde me estuprou", conta.

Após o crime, Ariadne fez dois exames para saber se tinha contraído HIV. O resultado positivo veio quando ela já estava com a saúde debilitada, por conta do vírus. Naquele momento, iniciou o tratamento.

Prostituição e drogas

A avó de Ariadne deixou apenas os móveis do apartamento alugado onde morava. Para piorar a situação, a jovem teve dificuldade para conseguir um emprego, por causa do estilo feminino e o documento com nome masculino.

"Na época, eu já tinha uma aparência completamente feminina, porque fazia hormonioterapia. Não tinha nenhum aspecto diferente, mas por conta da documentação, eu não conseguia trabalho", diz.

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Com fome, ela começou a se prostituir por comida. Ariadne conta que precisou recorrer a isso poucas vezes, mas que, em todas as ocasiões, usava drogas e bebidas.

"Essa ausência que eu buscava na droga me ajudava a atravessar a tortura que a prostituição era para mim. Eu sei que existem trabalhadoras sexuais que têm uma relação diferente. No meu caso, no entanto, era uma coisa muito violenta”, explica.

Novos caminhos

Aos 21 anos, Ariadne decidiu voltar a estudar. Ela acordava cedo para assistir às aulas do programa Telecurso, e conseguiu o certificado de conclusão do ensino médio por meio de uma prova aplicada pelo Ministério da Educação (MEC).

Nessa etapa, esbarrou novamente com o preconceito de gênero. Apesar de ter tirado uma nota boa, teve de repetir o teste porque a prova foi anulada devido à diferença entre a assinatura e o nome no RG.

"Na segunda prova, eu busquei a delegacia de ensino, informei o que tinha acontecido no ano anterior, e assegurei que minha prova seria aceita, mesmo constando minha assinatura como Ariadne Ribeiro”, relata.

Depois de conseguir o diploma, ela ingressou na faculdade. Em 2005, com 24 anos, Ariadne concluiu o curso de pedagogia.

Depois de formada, ela conseguiu um emprego no Centro de Infectologia de Itanhaém, no litoral de São Paulo. Lá, lidava com a população de rua dependente química.

"No começo não foi uma escolha propriamente dita, mas eu aceitei com gratidão. Hoje, percebo o quanto isso me formou como uma pessoa muito mais atenta e capaz de olhar a miséria humana e entender que ela não é o produto final, e sim, o meio pelo qual esse produto se manifesta", diz.

Ariadne Ribeiro com presentes dados por colegas no último de trabalho no CRATOD, de São Paulo — Foto: Arquivo pessoal

Nessa experiência, Ariadne encontrou a vocação para ajudar outras pessoas em situação de vulnerabilidade. De lá para cá, fez especializações, incluindo mestrado e doutorado na área de psiquiatria e psicologia médica.

No currículo, tem ainda um período de trabalho no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) ajudando pessoas da Cracolândia, na cidade de São Paulo. Essas experiências, segundo ela, a ajudaram a conquistar uma vaga na Organização das Nações Unidas (ONU). Desde 2019, ela mora em Brasília por causa do trabalho na UNAIDS.

Preconceito

Ariadne diz que, atualmente, não enfrenta situações de preconceito "latente e escancarado", como no processo de transição. Segundo a pesquisadora, o motivo é que a aparência física permite que ela "suma na multidão".

"Sou uma mulher como qualquer outra, mas acredito que se as pessoas pudessem me ver como trans e expressassem o que sentem ao meu respeito, talvez esse preconceito ainda existiria, porque eu os vejo atacando outras pessoas", conta.

Ela afirma que apenas a convivência e o respeito podem ajudar a superar os preconceitos enraizados na sociedade. "Não é só a LGBTfobia que é ensinada, o machismo é ensinado, o racismo é ensinado, todas as formas de discriminação são ensinadas, de forma a naturalizar esse preconceito, por piadas e brincadeiras de mau gosto", pontua.

"A sociedade cisma em ter alguém para pisar. O preconceito vai persistir enquanto a gente estiver tentando classificar as pessoas por quem tem mais valor e menos valor, porque a gente não sabe lidar com as próprias frustrações e acaba descontando nos outros", diz a pesquisadora.

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