Por Emanuelle Raimundo, g1 Rio Preto e Araçatuba


g1 entrevistou negros do interior de São Paulo que conquistaram cargos de liderança — Foto: Arquivo pessoal

O Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado neste domingo (20), reacende o debate sobre a importância do combate ao racismo.

A data é essencial para relembrar a construção da sociedade por meio da escravidão. Houve evolução com o passar dos anos, mas a falta de oportunidades para a população negra evidencia que ainda há um longo caminho a ser trilhado.

Dados da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) apontam que, nos últimos dois anos, não houve aumento significativo de alunos negros nos cursos de graduação oferecidos na unidade. Em 2020, do total de alunos matriculados, nove se autodeclaravam negros. Atualmente, na instituição há apenas onze estudantes.

A médica pediatra e neonatologista Marciali Gonçalves Fonseca Silva, de 61 anos, é uma dessas exceções. Ela é formada pela Famerp, fez residência na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu e ainda tem mestrado e doutorado.

Marciali Gonçalves Fonseca Silva, 61 anos — Foto: Arquivo Pessoal

Conquistar este currículo não foi nada fácil. Filha de pai músico, mãe inspetora de alunos e com cinco irmãos, a médica afirma que a família sempre foi simples.

"Morávamos na periferia da cidade, rua de terra, casinha muito pobre, telhado sem forro. Quem olhasse minha casinha abençoada, jamais diria que dali iria surgir alguém com curso superior."

Os comentários eram para que os irmãos trabalhassem, já que eram tantos. E eles até buscavam por alguma oportunidade, mas, talvez pela cor, não era tão fácil assim. Estudar era a opção e hoje todos estão formados.

"Sempre estudamos em escola pública. Depois, passamos no vestibular sem o sistema de cotas, já que naquela época ainda não existia. Minha irmã foi a primeira médica da família e eu segui seus passos e me formei cinco anos depois", diz Marciali.

Se no dia a dia já é difícil encontrar negros, imagina na medicina, curso considerado renomado. Marciali afirma que em sua turma não havia nenhum, mas atualmente percebeu um aumento.

"O número vem aumentando, mas ainda é pouco. Acho que faltam oportunidades, onde o sistema de cotas, ao meu ver, vem para reparar essa defasagem porque ao contrário do que muitos pensam, o negro é muito inteligente", afirma a médica.

Para completar o currículo e encher os pais de orgulho, a médica ainda foi uma das fundadoras da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal do Hospital de Base de Rio Preto.

"Não havia um local específico para o cuidado intensivo dos recém-nascidos, especialmente os extremos prematuros. Iniciamos um trabalho com a inauguração da UTI Neonatal com três leitos no subsolo. Com o passar dos anos fomos expandindo o número de leitos e com a chegada do Hospital da Criança e Maternidade (HCM), hoje temos 30."

Além do hospital, Marciali participou do projeto de construção da UTI da Santa Casa e atualmente também integra a equipe. Mesmo com todas essas conquistas, ela afirma que já sofreu e ainda sofre preconceito.

"Nós negros sabemos, nosso coração sofre todos os dias pela expressão da cor da nossa pele, cor linda, da resistência e resiliência. Nossa consciência neste dia deve ser regida pelo respeito a Deus e por um amor ao próximo isento de interesses menores, onde teremos a força para realizar todos os nossos sonhos. Não desista nunca", acrescenta.

Primeira diretoria representada por negros

Dia 25 de novembro de 2021 é uma data importante e que vai ficar para sempre na memória de Robson Pedro de Toledo, de 43 anos. Este foi o dia em que o advogado foi eleito diretor tesoureiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São José do Rio Preto.

Advogado Robson Pedro de Toledo, de 43 anos — Foto: Arquivo Pessoal

Ele e mais três pessoas assumiram a responsabilidade de "comandar" 12 municípios e mais de 6 mil advogados, mas esta é a primeira vez que a diretoria é representada por advogados negros. Isso aconteceu depois que o Conselho Nacional da OAB, em 2020, deferiu que as diretorias seccional e de subseção deveriam ter 30% de pessoas negras.

"Eu já participava como coordenador da Comissão de Igualdade Racial e acompanhei a decisão do conselho. Foi uma surpresa ser convidado para compor a candidatura da diretoria. Mesmo tendo entrado pela cota racial, tenho a percepção de aceitação e reconhecimento", diz.

Robson passou por muitas dificuldades para pegar o diploma e mais ainda para conseguir a carteira da profissão. Uma delas foi para estudar, pois os pais mudaram várias vezes de Rio Preto e isso prejudicou a conclusão dos ensinos fundamental e médio, precisando fazer um supletivo.

Ele também trabalha desde os 12 anos. Já fez serviços de pedreiro, ajudou em oficinas, foi atendente em padaria, entre muitos outros para ajudar a cuidar dos irmãos.

"Minha família sempre foi muito pobre, o meu pai motorista e minha mãe, faxineira. A casa sempre muito pequena para tantas pessoas. Muitas vezes fui fazer faxina com minha mãe", conta.

Mas as dificuldades financeiras não impediram que Robson conseguisse cursar o ensino superior. Ele fez cursinho pré-vestibular e ficou na lista de espera para uma vaga no curso de Letras da Unesp, mas não conseguiu entrar.

Contudo, depois de ver o irmão estudando direito, decidiu se matricular no mesmo curso em uma universidade particular. Trabalhava como vendedor para pagar a faculdade e estudava à noite. Sofreu um acidente e sem conseguir pagar o curso, trancou.

"Comecei a faculdade em 2007 e só me graduei em 2013. Passei no exame da Ordem em 2014 e recebi a carteira da OAB em 2015. Para minha família é como ter um troféu, e saber que alguém chegou lá, conquistando lugares antes impensados", afirma.

O advogado se recorda bem de sua turma na faculdade. Em uma sala com 94 alunos, apenas ele e mais dois eram negros. Quando pensa na quantidade de negros em cargos mais altos, acredita que há uma barreira, e deseja uma sociedade mais igualitária.

"Existe uma barreira invisível onde a cor ainda nos define, impedindo que embora toda a competência que desempenhamos, não mereçamos os melhores cargos, ou não estejamos à altura deles. Meu desejo é que as pessoas possam olhar além das cores das suas peles. Somos todos iguais e merecemos as mesmas oportunidades."

Doutora em educação

A filha do zelador e da dona de casa que se tornou doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) é Monica Abrantes Galindo, de 56 anos. Os pais só fizeram a escola básica, mas o que não faltou foi incentivo para que a filha conseguisse cursar o ensino superior.

Monica Abrantes Galindo, 56 anos, é doutora em educação — Foto: Arquivo Pessoal

"Eles não mediram esforços financeiros, considerando que éramos uma família de poucos recursos, para que eu pudesse estudar, fazer cursinho quando foi necessário, manter a escola técnica que era longe da minha casa, manter outros cursos na medida do possível", conta.

Monica terminou o ensino médio em 1984, já trabalhando, pois fez a escola técnica em telecomunicações, na área da eletrônica. Prestou vestibular para engenharia elétrica em uma universidade particular e física na USP, podendo escolher em qual gostaria de estudar. Na época, sem cotas, já que o sistema ainda não era uma realidade no Brasil.

Quanto mais ela evoluiu na carreira, menos pessoas negras foram encontradas. Antes de se tornar doutora, ela ainda fez licenciatura em física e mestrado em ciências. Na época, via poucos alunos da sua cor.

Quantidade de alunos negros matriculados em cursos da Unesp de Rio Preto
Dados são de 2022, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado
Fonte: Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Esta realidade pode ser comprovada com dados da Unesp de Rio Preto. Neste ano, do total de estudantes matriculados nos cursos de graduação, 19 se autodeclaram negros. No mestrado, há 25 alunos autodeclarados negros, enquanto no doutorado o número cai para 15. Em cada turma, é um em meio a muitos.

"No caso do curso superior, temos prioritariamente as pessoas negras frequentando as escolas públicas, que têm sido constantemente sucateadas, não garantindo uma formação de qualidade para que os jovens negros possam concorrer em pé de igualdade às vagas para as boas universidades públicas", diz.

A doutora também acredita que oportunidades são diferenciadas para a população negra.

"As condições materiais de nossa população é profundamente diferenciada em termos de oportunidades. Desde a moradia, até o acesso ao serviço médico, o acesso a uma educação de qualidade, a manifestação e valorização de diversas culturas, a valorização de um único padrão de beleza que nos exclui", afirma.

Atualmente, Monica é professora da Unesp de Rio Preto e trabalha prioritariamente com o curso de licenciatura em física. Ela também integra o Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da Universidade, um grupo que se dedica às temáticas étnico raciais.

O desejo de Monica para o Dia da Consciência Negra é que as diversas culturas e ciências sejam retomadas.

"Contar a história completa, revelar as contribuições e a participação dessas populações afrodescendentes e indígenas em todas as áreas da vida e do conhecimento. No Dia da Consciência, tomar consciência do quanto, como negros e negras temos agido, criado, influenciado, trabalhado e vivido", acrescenta.

Sonho de ser médico

Gustavo André Pinheiro, de 35 anos, sempre quis ser médico. Quando criança, seus brinquedos eram todos associados à medicina. Por isso, desde muito cedo, os pais embarcaram neste sonho e fizeram o que puderam para ajudar na realização.

Gustavo André Pinheiro, 35 anos, é médico — Foto: Arquivo Pessoal

A mãe se tornou um exemplo, já que entrou na faculdade aos 50 anos. "Eu não sou o primeiro a ter curso superior, pois minha mãe se formou quando eu estava no segundo grau. Ela é meu maior exemplo, de que a educação salva e pode mudar a vida de quem não nasceu privilegiado", diz Gustavo.

Quando entrou na faculdade, o médico teve a sensação de que a vitória não era só dele, mas também de toda a família. Ele se formou em medicina em 2012 pela Universidade de Uberaba (Uniube), por meio de uma bolsa integral do Programa Universidade Para Todos (Prouni).

"Hoje tenho minha clínica, além de atuar na maternidade da cidade como clínico geral. Também trabalho na emergência da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Tangará em Rio Preto e como preceptor em emergência para os alunos da Famerp", conta.

Em relação ao racismo no mercado de trabalho, o médico nunca vivenciou uma discriminação explícita, mas olhares surpresos pelo cargo que assume são constantes. Por isso, o que deseja para esta data é a valorização do estudo.

"Para os jovens pretos, como meus filhos, eu sempre falo que só a educação salva. Logo cedo percebi que o estudo e o conhecimento libertam, então sempre digo que a escola tem que ser a segunda casa, valorizar os professores e ler", afirma Gustavo.

Lei de Cotas

Segundo o Ministério da Educação e Cultura (MEC), a Lei n° 12.711/2012, sancionada em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

Exemplo de como funciona a Lei de Cotas em uma turma de 100 alunos, em estado com 5% dos habitantes pretos, 29% pardos, 2% indígenas e 8% com deficiência — Foto: Arte/g1

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