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Desigualdade e empobrecimento: os efeitos da pandemia nas notas do ENEM

Inep recebeu 172 mil e-mails com queixas de alunos sobre suas notas no Enem; Defensoria Pública da União diz que muitos ficaram sem qualquer resposta - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Inep recebeu 172 mil e-mails com queixas de alunos sobre suas notas no Enem; Defensoria Pública da União diz que muitos ficaram sem qualquer resposta Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Colunista do UOL

28/11/2021 13h00

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Lucas Falcão*

Neste domingo, milhões de estudantes farão as provas de matemática e ciências da natureza. Apesar das aulas presenciais já terem voltado em diversos locais, muitos alunos de escolas públicas sofreram diretamente o impacto da pandemia no aprendizado. Estes alunos não tiveram acesso a recursos como internet e computadores, além da própria adequação do sistema público a educação remota ter sido deficiente. Logo, a previsão é que a geração que sofreu esses impactos diretos fique ainda mais para trás no exame, o que se traduz em menores chances de acessarem o ensino superior.

O aumento das desigualdades educacionais terá efeitos não somente nessa geração. Como a educação dos pais influencia diretamente a educação dos filhos, é possível afirmar que esta geração com formação prejudicada (ou ainda pior, sem formação) fará com que esta desigualdade ecoe por outras décadas.

A escolaridade dos pais é justamente um dos principais fatores responsáveis pela proficiência dos alunos. Obviamente, ter pais com níveis elevados de escolaridade também significa que possuem maior renda, assim podendo prover bens e serviços de maior qualidade para seus filhos. Entretanto, há benefícios relacionados não apenas ao fator financeiro. Pais mais educados, geralmente, priorizam a qualidade da educação de seus filhos, além de possibilitar um ambiente com maiores estímulos cognitivos e ajudar diretamente no aprendizado da criança.

No ENEM não seria diferente. Alunos com pais com maior escolaridade possuem desempenho melhor na prova. No primeiro gráfico, vemos que a nota média dos alunos nas provas objetivas (isto é, não incluindo a redação), em média, é maior para aqueles que ou o pai ou a mãe possuem maior escolaridade no Enem de 2019 (últimos dados disponíveis). Isto não é um fator novo. No segundo gráfico, apresentamos a média dos alunos que ao menos um progenitor possui ensino superior subtraída pela média daqueles que nem o pai ou a mãe possuem tal titularidade durante a década. Isto é, é a diferença de desempenho dos dois grupos. Aqueles com os pais com maior instrução possuem sistematicamente maiores notas.

Gráfico 1: Relação entre a escolaridade dos pais e nota média no Enem 2019

Nota: média das notas dos indivíduos presentes nas provas objetivas em 2019 por escolaridade máxima dos pais. Elaboração própria com base nos microdados do Enem de 2019.

Gráfico 2: Diferença da nota de indivíduos com pais com e sem ensino superior no Enem entre 2010 e 2019

Nota: diferença média das notas dos indivíduos presentes nas provas objetivas com ao menos um progenitor com ensino superior em comparação a aqueles sem em 2010 a 2019.elaboração própria com base nos microdados do Enem de 2010 a 2019

O grande desafio é como a deficiência na educação atribuída à pandemia poderá impactar futuras gerações. Especula-se que, devido à falta de políticas públicas capazes de levar o acesso à educação pública à população mais vulnerável, uma geração de alunos de escolas públicas terá menos chances de acessar o ensino superior em comparação a outras gerações que conseguiram se formar antes da pandemia. Isto é, estes alunos formados antes da pandemia poderão usufruir da política de cotas que destina metade das vagas em universidades federais para alunos do ensino público justamente por possivelmente terem maiores notas. Entretanto, não será apenas esta geração de alunos afetada. Os filhos desses indivíduos que não conseguiram acessar o ensino superior não contaram com os possíveis benefícios que poderiam ter caso seus pais cursassem a universidade.

Infelizmente, já é um hábito não esperar nenhum tipo política do governo adequada para lidar com os aumentos das desigualdades geradas pela pandemia. No caso da educação é ainda mais grave. Aparentemente a principal política é esvaziar as políticas e órgãos com desempenho satisfatório. Este é o caso do INEP (órgão responsável pelo ENEM), que semanas antes do exame, funcionários de carreira pediram demissão afirmando interferência e falta de comando no instituto. Outro exemplo é a demora para a divulgação dos dados sobre os alunos que realizaram o exame de 2020. Apesar de ser quase certa a expansão das desigualdades, ela não pode ser mensurada devido a indisponibilidade dos dados. Isto atrapalha até a criação de políticas que amenizem a educação deficiente da geração de alunos durante a pandemia, pois sem evidências concretas o debate acerca das políticas adequadas é comprometido.

O aumento das desigualdades, fruto da pandemia e do empobrecimento crescente da população, já pode ser verificado na diminuição do número de inscritos para o ENEM 2021. O Brasil precisa de um plano de retorno às aulas e de enfrentamento das desigualdades decorrentes da pandemia, de forma coordenada e articulada entre União, Estados e municípios. Não faremos isso sem um governo que realmente pense em como construir políticas públicas e não só como destruí-las.

*Lucas Falcão é mestre em economia pela UFABC e doutorando em Administração Pública e Governo na FGV.