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Priscila Cruz

Descaso com analfabetismo infantil lembra conivência com a escravidão

Devemos cobrar atenção obsessiva à educação pública e, como no experimento do marshmallow, escolher legados duradouros

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Priscila Cruz

Mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é presidente-executiva e cofundadora do movimento Todos Pela Educação

[RESUMO] Experimento de psicologia comportamental que avalia a disposição de crianças adiarem uma recompensa imediata para obter ganhos maiores no futuro inspira reflexão sobre os rumos da política educacional brasileira. Neste momento decisivo, em que convivem experiências exitosas e o legado devastador do governo Bolsonaro e da pandemia, é fundamental que a sociedade deixe de tolerar a precariedade da educação pública no país.

O pesquisador Walter Mischel, professor da Universidade Stanford, liderou nos anos 1970 um experimento que se tornaria famoso pelas cinco décadas seguintes: o experimento do marshmallow.

A partir do campo da psicologia comportamental, os testes ofereciam a crianças, com média de idade entre 4 e 5 anos, a escolha entre uma recompensa (um marshmallow) entregue imediatamente ou mais recompensas caso elas aguardassem alguns minutos até o retorno do pesquisador. Ou seja: diante de um doce convidativo, as crianças poderiam escolher entre comê-lo na hora ou ter prazer em dobro dali a 15 minutos —uma eternidade para a faixa etária.

Volta às aulas na escola estadual Professora Yolanda Bernardini Robert, na zona sul de São Paulo - Karime Xavier - 2.fev.22/Folhapress

As mesmas crianças foram acompanhadas nos anos seguintes, e aquelas que conseguiram retardar a recompensa tiveram comportamentos e conquistas melhores que as demais, como melhor desempenho em testes educacionais.

Muitos outros experimentos foram realizados nas décadas seguintes, que aprofundaram o entendimento acerca das razões da escolha pelo curto ou longo prazo e seus ganhos e identificaram e estudaram outros fatores que explicam indicadores positivos futuros, como renda, conexões sociais, ambiente familiar, cor e gênero, entre outros.

Em um livro de 2013, intitulado "Scarcity: Why Having Too Little Means So Much" (escassez: por que ter muito pouco significa tanto), o cientista comportamental de Princeton Eldar Shafir detalhou como a pobreza pode levar as pessoas a optar por recompensas de curto prazo. Em outras palavras, um segundo marshmallow pode parecer irrelevante quando uma criança tem motivos para acreditar que o primeiro pode desaparecer.

O grau de confiança nos adultos com quem vive a criança também influencia suas escolhas: se ela não acreditar que o adulto vai aparecer com o segundo doce, ela tenderá a assegurar o que já tem e não arriscar no futuro incerto.

O experimento do marshmallow, com suas conclusões e controvérsias, disparou muitos debates sobre como tomamos decisões que influenciam nossas vidas e a coletividade. Preservar hoje para salvar o planeta, poupar agora para viver bem mais tarde, prevenir doenças com atitudes saudáveis, priorizar a educação para que todos tenham uma vida melhor.

É por isso que pego emprestado do experimento do professor Mischel a imagem dos marshmallows para tratar das escolhas políticas e dos dilemas entre as promessas e recompensas para o país a curto ou a longo prazo, especialmente neste momento tão decisivo para o Brasil.

O país será capaz de priorizar a educação como política emancipatória, de equalização de oportunidades e de melhoria de vida individual e coletiva, mesmo que exija a disciplina de aguardar um, dois ou três mandatos para que os resultados apareçam e a recompensa política concretize-se? Ou a curva de valor da recompensa mais tardia precisa ser encurtada para evitarmos a preferência por recompensas menores e mais imediatas, ao invés de recompensas maiores no futuro?

É como se cooptássemos o tempo como aliado (ou inimigo) de nossos desígnios e valores. As trocas no tempo —isto agora ou aquilo depois?— valem tanto para as decisões cotidianas, ligadas, por exemplo, a saúde, finanças e escolhas profissionais, quanto para as escolhas políticas de longo alcance. São decisivas para nos afastar daquilo que poderíamos ser e conquistar, sobretudo em um campo em que os dividendos políticos podem se esgotar no prazo de quatro anos.

Isso produz uma distorção temporal: são decisões de hoje das quais a pessoa, a instituição ou a sociedade se arrependerá no futuro. Governos que priorizam ganhos e interesses políticos imediatos prejudicam a sociedade por anos e décadas, ao passo que governos que pensam na sociedade são motivados por legados duradouros.

Incontáveis vezes sonhei acordada pensando em um Brasil imaginário que investiu em educação 50 anos mais cedo e que agora exibe indicadores econômicos e sociais muito melhores. A boa notícia é que temos muito mais condições hoje de legar esse país melhor para todos em um futuro muito mais breve que é comumente imaginado.

As estruturas estão mais sólidas, incluindo o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), avaliações de aprendizagem e o Censo Escolar, universalização do acesso às escolas, entre outras.

Igualmente importante, hoje são muitas as soluções brasileiras amparadas na literatura internacional mais recente sobre reformas educacionais de sucesso, sobretudo aquelas em estados e municípios com renda per capita abaixo da média nacional, como Ceará, Pernambuco, Teresina, Sobral (CE) e Coruripe (AL).

Coruripe, por exemplo, tem o maior Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) dos anos iniciais do ensino fundamental entre os municípios com mais de 50 mil habitantes. Sobral ocupa a primeira posição entre os municípios com mais de 100 mil habitantes. Teresina, embora localizada em uma das regiões mais pobres do país, não só alcançou o melhor Ideb no ensino fundamental entre as capitais como vem reduzindo as desigualdades.

Entre as redes estaduais, o Ceará tem dado aula quando o assunto é colaboração entre estado e municípios em prol da aprendizagem dos estudantes, levando a ocupar as primeiras posições no Ideb tanto no fundamental quanto no médio. Já Pernambuco é destaque nacional no ensino médio em tempo integral: é lá onde está o maior percentual de matrículas nessa modalidade e o terceiro maior Ideb na etapa.

Esses e outros êxitos nacionais não demoraram 30 anos para serem alcançados. Foram conquistados em duas ou três gestões, oito a 12 anos, portanto. Mostram que precisamos urgentemente de decisão e empenho políticos.

Até quando se buscarão desculpas para não mudarmos radicalmente o patamar de qualidade da educação básica para todos os brasileiros, com absoluta prioridade para alunos pobres, pretos e em situação de maior vulnerabilidade? Não podemos demorar, muito menos errar, nas escolhas, diante dos enormes desafios trazidos pela pandemia de Covid-19 e de um governo que, em sua omissão, deixou o Ministério da Educação limitado à incompetência conjugada com visão curta e oportunista.

Ao longo de 2021, o Todos pela Educação mapeou políticas públicas de sucesso em oito redes de ensino no Brasil. Viajamos, conversamos e analisamos os fatores que explicam seus bons resultados.

Descobrimos os pontos em comum nas experiências e elencamos cinco para chamar a atenção de gestores: comprometimento de lideranças políticas; continuidade e aperfeiçoamento das políticas, mesmo com as eventuais trocas de gestão; visão sistêmica, com diferentes políticas implementadas em conjunto; engajamento de todos os atores do sistema; aprendizado a partir de evidências e de diagnósticos bem-elaborados, não de achismos.

A educação precisa hoje de nossa atenção em três frentes:

  1. Cuidar do corpo, do coração e da mente. O Brasil precisa oferecer pelo menos duas refeições completas nas escolas públicas para aplacar a fome e nutrir os corpos dos alunos, além do acolhimento e cuidado com a saúde mental de estudantes e professores depois de quase dois anos de impacto profundo da pandemia;
  2. Recompor as aprendizagens que não foram consolidadas nos quase dois anos com escolas fechadas e ensino remoto insuficiente. O Brasil precisa de um processo bem-estruturado, bem-conduzido e efetivo de recuperação presencial e híbrido, além de expansão mais ambiciosa de escolas em tempo integral;
  3. Ter um plano sistêmico. O país precisa da implementação coordenada entre União, estados e municípios de um conjunto de medidas amparadas na ciência e nas experiências nacionais exitosas. Entre essas medidas, estão alfabetização em regime de colaboração, educação profissional tecnológica antenada com os anseios profissionais da juventude e necessidades econômicas do país, política nacional para a primeira infância que assegure creches e pré-escola de qualidade e serviços intersetoriais para todas as crianças de até seis anos.

Os governos eleitos neste ano terão essa missão histórica, em frentes que conciliam desafios emergenciais, de curto prazo, e estruturais, de médio e longo prazos. Como eleitores, nosso papel é dar atenção a essa pauta no momento do voto.

Para a sucessão ao Planalto, já sabemos que o atual presidente tem zero compromisso com a educação e usou o MEC como trampolim ideológico. Há outras escolhas possíveis, com candidaturas sérias e capazes de dar à educação a prioridade necessária.

Por enquanto, somos aquela criança que não confia nos adultos sentados nas cadeiras de poder. E mais: pela fome e pelo desemprego à volta, parecemos adultos incapazes de colocar a educação com a prioridade necessária ou de exigir que os políticos o façam, limitados por necessidades imediatas, emergenciais, de curtíssimo prazo. No ocaso do presente, o futuro se mostra uma luz distante, dispersa, intangível.

O fundamental é despertar na sociedade, em especial a parcela que é menos pressionada pela sobrevivência diária, o compromisso de cobrar atenção obsessiva à educação pública.

Precisamos deixar de tolerar a retirada de investimentos, a queda de qualidade, a ausência de uma escola pública digna e capaz de garantir a aprendizagem de todos os seus alunos, independentemente do CEP, da cor, da condição socioeconômica. A conivência com crianças de 7 anos de idade ou mais analfabetas, em pleno século 21, equipara-se à conivência de grande parte da elite com a escravidão em outros séculos.

Devemos ambicionar mais de um marshmallow para usufruto imediato. É possível muitos marshmallows para todos. Esse é o legado duradouro que os eleitos neste ano têm a oportunidade de deixar aos brasileiros, se tomarem o rumo de investir nas pessoas, na nossa gente.

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