• Últimas da coluna

Deputado do ES quer proibir professores de falar sobre sexo com alunos

Após tentar censurar artistas, Euclério Sampaio agora pretende impedir professores de cumprir o seu dever de informar e orientar, sob uma argumentação no mínimo confusa


Foto: Amarildo

Euclério Sampaio volta a atacar. Depois do projeto que proibia exposições com “teor pornográfico” – uma forma dissimulada de censura prévia às artes, condenada ao veto –, o deputado protocolou, na última terça-feira (14), um projeto que promete causar ainda mais controvérsia: apresentando-se como guardião da inocência infantil e dos “valores morais das famílias”, Euclério quer que educadores fiquem proibidos, “por qualquer meio, (de) influenciar a sexualidade dos alunos, introduzir práticas sexuais ou praticar doutrinação sobre gêneros nas escolas públicas de nível infantil e fundamental do Estado do Espírito Santo”.

A redação do projeto daria inveja à garotada neoconservadora do MBL. No projeto anterior, de censura às artes, Euclério foi criticado, entre outros motivos, por ser vago demais na justificativa. De fato, esta tinha três parágrafos e nem sequer explicava o que ele queria dizer com “pornografia”. Desta vez, talvez para se antecipar a críticas, o deputado pôs a assessoria jurídica para trabalhar. O novo projeto traz uma justificativa extensa, de quatro páginas, incluindo citações da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e até da Convenção Americana de Direitos Humanos. Mas é um carnaval conceitual (ler notas).

Além de misturar e deturpar conceitos, a justificativa do novo projeto não responde a questões centrais: o que o autor entende por “doutrinação de gênero”? E como exatamente, ao falar de sexo e de sexualidade com alunos de 13, 14 anos (nas séries finais do fundamental), um(a) docente estará “influenciando a orientação sexual” e “introduzindo práticas sexuais”? Será que, com mais informações sobre sexo, o aluno estará mais ou menos preparado para se iniciar na atividade sexual? Educado para o respeito à diversidade, o aluno sai da aula decidido a “mudar de gênero”? Ou passa a respeitar mais os colegas do sexo oposto ou com identidade sexual diferente da sua?

O projeto de Euclério estabelece uma relação binária e de antagonismo entre Estado/escolas e famílias/igrejas, como se um lado estivesse em oposição ao outro, em vez de se complementarem. Pelo entendimento do deputado, falar de educação sexual e discutir identidade de gênero nas escolas (não “ideologia de gênero”, como ele usa equivocadamente) vai contra os valores morais pregados e ensinados dentro de casa pelos pais – aliás, segundo Euclério, por todos os pais.

O artigo 2º não deixa dúvida: “As atividades pedagógicas das unidades de ensino citadas no artigo 1º devem respeitar às (sic) convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação sexual”. Já o artigo 3º prevê que “o descumprimento desta lei culminará nas sanções previstas no Estatuto do Servidor Público Estadual”. Segundo o referido Estatuto, as sanções aos servidores estaduais pode ir de uma simples advertência verbal ou escrita até suspensão do cargo e demissão (no caso de efetivos) ou exoneração (no caso de comissionados).

Por essa ótica, um professor estaria cometendo um crime, por exemplo, ao falar de prevenção e “sexo seguro” a uma turma do 8º ano cheia de adolescentes grávidas. Poderá ser punido se disser a uma turma de 9º ano que gays merecem tanto respeito quanto uma pessoa heterossexual. Estará sujeito a sanções se convidar a turma a refletir sobre o bullying diário sofrido por um(a) colega só porque ele(a) manifesta comportamento diferente do padrão social ou identidade sexual que foge à heteronormatividade.

O curioso é que Euclério afirma que “a ideologia de gênero tem sido difundida nas instituições de ensino sem o devido embasamento legal, bem como sem fundamento científico que justifique sua eficiência pedagógica no combate a discriminação sexual”. Mas na justifica ele afirma, como se fossem fatos comprovados, uma série de opiniões sem o menor embasamento, a começar pela própria afirmação de que não há “eficiência pedagógica no combate à discriminação”. Aliás, é o caso de perguntar: o que ajuda então a combater a discriminação? Será que um projeto assim ajuda?

Outro ponto intrigante: o deputado critica tanto a “doutrinação nas escolas”, mas quer que determinadas doutrinas morais e religiosas “tenham precedência” sobre a educação escolar. Como entender?

Jogo político, mas...

Euclério é um deputado inteligente, voluntarioso, com senso de oportunidade. Percebeu que iniciativas como essa, por mais antidemocráticas e antipedagógicas que sejam, atendem em cheio a um determinado segmento do eleitorado onde encontram enorme ressonância – o do fundamentalismo religioso. Na semana passada, ao defender o seu “projeto da mente nua”, contra a nudez em exposições artísticas, ele foi ovacionado por essa claque como nunca antes em sua vida.

Com mais essa iniciativa, aplaudida por esse público específico, Euclério deixa claro que é nesse filão que vai investir para se reeleger em 2018. Ok, faz parte do jogo político. Mas sério?

O analfabetismo funcional está aí, a rede pública estadual amarga desempenho insatisfatório em avaliações de aprendizado. E é com isso que os parlamentares capixabas estão mais preocupados? Ademais, as grávidas precoces enchem as salas da rede escolar, os crimes por homofobia se multiplicam, assim como os feminicídios no Espírito Santo. A educação para mudar isso começa na escola, nobres deputados. Queiram o senhores (se reeleger) ou não.

Abaixo, confira os principais trechos da justificativa do projeto de Euclério

Anseio e repulsa

Temos na proposta o anseio preponderante da população capixaba, que recentemente tem presenciado com repulsa alguns acontecimentos inapropriados nas escolas de nível infantil e fundamental em todo território brasileiro, na qual envolvem crianças em atividades com conotação sexual com o pretexto de discutir a sexualidade e, por vezes, tais ações não respeitam a vontade dos pais e afrontam o poder da família em educar seus filhos de acordo com suas crenças, costumes e princípios.

Doutrinação

A doutrinação e a influência na sexualidade não cabe (sic) ao Poder Público, ainda mais quando são utilizadas práticas questionáveis e que desrespeitam os princípios morais e religiosos de diversas pessoas.

Sem fundamento

Ocorre que tais práticas eivadas de contradições conceituais e sem fundamento técnico, como é o caso da ideologia de gênero, tem sido difundida nas instituições de ensino sem o devido embasamento legal, bem como, sem fundamento científico que justifique sua eficiência pedagógica no combate a discriminação sexual ou em busca da igualdade entre os gêneros, pelo contrário, a aplicação indiscriminada deste princípio expõem as crianças a métodos constrangedores e impróprios, comprometendo o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, uma vez que, a fragilidade psicológica de uma criança que não atingiu a idade suficiente para formação do seu caráter não permite a clara compreensão da sexualidade humana.

Adestramento

(...) a ressonância dos embates relacionados a gênero e a sexualidade chegaram indiscriminadamente às escolas de todo o país. Logo, não se trata de impedir o emprego de orientação sexual nas unidades de ensino, mas repelir sua introdução por quem pretende tirar proveito da vulnerabilidade intelectual das crianças para adestrá-las pretensiosamente de maneira antidemocrática e contrária a vontade dos seus progenitores.

Prazer patológico

A infância é uma fase marcada pelo gradual conhecimento do universo adulto e, ao vivenciar a sexualidade precocemente, a criança antecipa as fases do desenvolvimento biológico normal, podendo levá-la à busca pelo prazer de modo patológico, sem consciência e responsabilidade. Além de outros danos à sua formação moral e psicológica, somados ao infortúnio de ver a infância, e toda a sua inocência, ingenuidade e naturalidade, morrer.

Conteúdo erótico

Portanto, há de se coibir tais práticas nas escolas de nível infantil e fundamental que detém grande parte dos alunos que não atingiram por completo o desenvolvimento do seu caráter, para evitar o desrespeito aos princípios morais que norteiam as famílias e impelir o abuso psicológico sofrido pelas crianças com a antecipação do conteúdo erótico.

Erotização infantil

Assim, com a aprovação deste projeto, ficará assegurado o direito da família em educar seus filhos de acordo com seus princípios morais, éticos e religiosos, além de resguardar a integridade psicológica das crianças das escolas de nível infantil e fundamental, garantindo assim uma infância plena e sem estímulos que proporcione a erotização infantil.

Análise: Maria José Cerutti Novaes - psicopedagoga, mestre em Educação e professora da Faesa

"Antes de mais nada, para se propor qualquer legislação que venha da Educação, devem ser consultadas pessoas ligadas à Educação, especialistas na área, pessoas que lidam com Educação e que legislam sobre a escola propriamente dita, porque quem está dentro da escola é que realmente sabe o que está acontecendo na escola e do que a escola realmente precisa. Do modo como usados no projeto, os termos e conceitos estão equivocados. Ensino de sexualidade não é prática de sexualidade. Vivemos numa sociedade democrática. O respeito ao outro, a qualquer pessoa, tem que existir. Isso é um princípio educacional, um princípio ético também.

Falar de sexo e de sexualidade na escola não estimula ninguém a uma iniciação precoce na vida sexual. Pelo contrário, esclarece ao aluno o que é. E tem outra coisa: existem disciplinas no currículo escolar que falam da reprodução humana, dos órgãos reprodutores. Isso é conteúdo das ciências naturais, você tem que falar disso. Agora, isso não tem nada a ver com iniciação na atividade sexual. As pessoas têm que começar a entender as diferenças que existem, e nós temos que ensiná-las a respeitar. Quando se fala de valores, também estão o respeito às mulheres, o respeito às crianças e inclusive a pessoas com identidade de gênero diferente, como temos que respeitar os negros, pessoas de outra religião... A escola precisa, sim, ensinar a criança a lidar com o outro com o respeito.

Por fim, em vez de incentivarmos discussões que não têm fundamento sobre a escola, deveríamos estar discutindo outras questões muito mais importantes e mais preocupantes relacionadas à Educação: a alfabetização na idade certa, a violência nas escolas, as agressões até aos professores. São situações que estão ligadas ao respeito ao outro e ao colega. Por isso, as relações de respeito têm que ser discutidas, sim, senão surgem questões equivocadas e que produzem violência."

 

 

Ver comentários