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Diversidade e Inclusão

Decreto do atendente pessoal nas escolas de São Paulo tem incoerências e ilegalidades, dizem advogadas

Especialistas em diretos das pessoas com deficiência analisam determinação do governo de SP. Secretaria de Educação afirma que medida segue a Lei Brasileira de Inclusão e não substitui apoios existentes nas escolas.

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Por Luiz Alexandre Souza Ventura
Atualização:
Decreto 68.415/2024 é assinado pelo governador de SP, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo secretário de Educação, Renato Feder.  


A publicação do Decreto 68.415/2024, assinado pelo governador de SP, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pelo secretário-chefe da Casa Civil, Arthur Luis Pinho de Lima, e pelo secretário de Educação, Renato Feder, gerou muitas dúvidas e críticas a respeito da legalidade da medida e, principalmente, da transferência de responsabilidades do Estado para as famílias de estudantes com deficiência.

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Entre os questionamentos está o conflito da nova ordem com o Decreto 67.635/2023, que dispõe sobre a educação especial na rede estadual de ensino e estabelece no artigo 18 que "O Profissional de Apoio Escolar - Atividades de Vida Diária - PAE/AVD atuará no auxílio necessário aos estudantes que não consigam realizar com autonomia e independência as atividades de: I - alimentação, no cotidiano escolar; II - higiene pessoal, íntima e bucal, incluindo o apoio para utilização do banheiro no cotidiano escolar; III - locomoção nos ambientes escolares e espaços alternativos para atividades escolares; IV - autocuidado no cotidiano escolar".

A entrada de atendentes pessoais nas escolas estaduais, situação que passa a ser autorizada, conforme ordem de Tarcísio publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo nesta quarta-feira, 3, tem sido impedida pelas unidades de ensino e há relatos de alunos com deficiência, principalmente aqueles que precisam de maiores níveis de suporte, enviados de volta para casa.

O novo decreto determina que "atendente pessoal é a pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração, assiste ou presta cuidados básicos e essenciais ao estudante com deficiência no exercício de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas".

Apesar de já estar em vigor, o novo decreto precisa de normas complementares, conforme rege o artigo 5, "no que diz respeito: I- aos requisitos de qualificação do atendente pessoal; II- ao procedimento de indicação, inclusive, com a previsão de recurso em caso de indeferimento do requerimento; III- à conduta do atendente pessoal e à sua interação no ambiente escolar".

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Há dúvidas sobre qual será o alcance da atuação desse atendente pessoal, se terá autorização, autoridade e autonomia para intervir em todas as situações para as quais está habilitado ou será mero acompanhante.

Sobre todas essas questões, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) responde que "o (novo) decreto segue a descrição de Atendente Pessoal prevista na Lei Brasileira de Inclusão (13.146/15), artigo 3º, inciso XII: Atendente pessoal: pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração, assiste ou presta cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência no exercício de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas".

A Seduc-SP também ressalta que "o Atendimento Pessoal ao Aluno com Deficiência não transfere a responsabilidade de atendimento ao estudante elegível à Educação Especial na rede pública e a permissão desse profissional em ambiente escolar não substitui, tampouco limita os apoios, recursos e serviços oferecidos pela Seduc-SP, tais como o Profissional de Apoio Escolar (PAE) e o Atendimento Educacional Especializado (AEE), com professores especialistas, no contraturno na Sala de Recursos, Professor Especializado do Projeto Ensino Colaborativo, bem como disponibilização de material, mobiliário, estrutura, recursos pedagógicos e de tecnologia acessíveis", diz.

Aberração - A advogada Bárbara Moura Teles, autista com diagnóstico tardio e mãe de uma criança autista, especialista em direitos da saúde, de autistas e de pessoas com deficiências ocultas, considera chama o decreto de "mal feito" e afirma que a decisão distorce o papel da família na educação inclusiva.

"Acompanhamento especializado é o termo correto porque é isso que está determinado nas leis específicas de inclusão de pessoas com deficiência, de autistas e outras", diz. "Esse decreto mal feito determina que as famílias paguem pelo profissional no ambiente escolar, ou um membro da família vá ao ambiente escolar para participar do processo extremamente importante para pessoas com condições específicas. O ambiente escolar é um dos mais importantes para autistas ou pessoas com deficiência. A família tem outro papel, em conjunto, sim, com a sociedade, mas a família tem outro papel", afirma a advogada.

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"A mãe, geralmente, é a que mais assume as responsabilidades do filho, e quando o filho vai para a escola, talvez este seja o momento em que a mãe trabalhe, ou descanse, ou faça qualquer outra coisa que é de direito na vida. Então, é uma aberração sem limite, é um absurdo esse decreto", avalia. "É dever do Estado fornecer todas as condições relacionadas às pessoas com deficiência ou não. Juridicamente falando, decreto não tem força de lei. Então, o poder judiciário facilmente, com medida cabível, cancela a eficácia desse decreto. De novo, decreto mal feito, mal redigido. sem nenhuma inclusão, sem nenhum direcionamento específico para a pessoa com deficiência, não tem força de lei. É um simples ato administrativo do governador de São Paulo, feito de maneira errada", diz Bárbara Moura Teles.

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Redundância - Maria Carolina Basso, também advogada especialista em direito da saúde e mãe de um estudante autista, membro da Comissão de Direito à Saúde - Região Sudeste da Associação Brasileira de Advogados (ABA), ressalta que, após a publicação do decreto, grupos ligados à defesa dos autistas entenderam que o texto permitiria a entrada do assistente terapêutico na escola, mas ela observa que uma análise jurídica, em correlação a outras normas, gera dúvidas.

"Verificamos que o atendente pessoal pode ser membro da família do e irá atuar nos cuidados básicos, na figura de um cuidador. Não poderá estar habilitado em técnicas ou procedimentos utilizados por profissionais. Em análise inicial, conseguimos identificar que a exclusão das técnicas ou procedimentos das profissões legalmente estabelecidas se reportam especificamente ao ABA e aqui identificamos a primeira barreira para classificar o atendente pessoal como terapêutico", explica.

"Identificamos que, no artigo 2, há observação de que as habilidades necessárias para auxiliar o estudante ainda serão definidas por resolução do secretário da Educação. Sendo assim, entendo que esta lacuna, preenchida pelo secretário, poderá esclarecer a impossibilidade de se classificar o atendente pessoal como atendente terapêutico, eis que o parágrafo único do artigo 1 já traz esse impedimento", comenta a advogada.

No que diz respeito ao Decreto 67.635/2023, que dispõe sobre a educação especial na rede estadual de ensino, Maria Carolina Basso argumenta que as funções destinadas ao profissional de apoio escolar para atividades de vida diária (previsto no decreto de 2023) são as mesmas do atendente pessoal (estabelecido no novo decreto), com a diferença quanto ao custeio que, na ordem de 2024, deverá ser contratado e pago pelo representante legal da criança ou poderá ser membro da família.

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Na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (n° 13.146/2015) e no Decreto Federal n° 8.368/14, que regulamenta a Lei Federal n° 12.764/2012 da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, lembra a advogada, há apenas menção sobre acompanhante especializado ou profissionais de apoio, mas sempre conectado à área da educação.

"A leitura fria das normas demonstra que, ao longo dos anos, os acompanhantes especializados sempre carregam as mesmas características, quais sejam, educacional e vida diária. Para ambos, a interpretação possível é a de que esse profissional seja capaz de introduzir as crianças com deficiência no contexto escolar da educação regular, podendo assim exercer a função de tutor, mediador ou auxiliar, dependendo da necessidade de cada aluno. É totalmente diferente do atendente terapêutico, comumente conhecido como AT, profissional da área da saúde especializado em uma técnica capaz de gerenciar o comportamento usualmente atrelada à Análise do Comportamento (ABA), fazendo parte de uma equipe multidisciplinar que acompanha a criança em seu tratamento médico/terapêutico. Portanto, a conclusão jurídica do tema é a de que, até o presente momento, não há nenhuma norma, seja estadual ou federal, que garanta a obrigatoriedade de um atendente terapêutico (AT) na escola, mas apenas e tão somente do acompanhante especializado e, agora, pelo novo Decreto 68.415/2024, o atendente pessoal, que carrega em si a novidade de que poderá ser alguém da própria família do estudante. Diante disso, caso a família da criança, apoiada pelo médico, entenda pela necessidade do assistente terapêutico, a ser custeado pelo Estado ou plano de saúde, o único meio de acesso é a ação judicial que, atualmente, divide opiniões dos magistrados quanto ao cabimento do pedido", esclarece a especialista.

"Entendimento contrário demandaria um questionamento. Se o Decreto 68.415/2024 realmente permite o acesso do atendente terapêutico no âmbito escolar, porque o nome dado foi atendente pessoal, já que a nomenclatura 'Assistente Terapêutico' é conhecida até dos que não fazem parte das famílias atípicas? Minha conclusão como advogada e mãe de autista é que a força utilizada pelos grupos que lideram a busca pelos direitos das crianças com deficiência seja concentrada para que a Agência Nacional de Saúde inclua no rol das terapias obrigatórias ou que uma lei federal seja proposta para declarar de forma clara e objetiva a obrigatoriedade do assistente terapêutico como parte integrante do tratamento de todas as crianças com deficiência, seja no âmbito escolar, na sociedade ou na residência, pois é ele que, na rotina diária, ajudará a conectar os caminhos que separam nossos filhos da verdadeira inclusão", completa Maria Carolina Basso.


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