Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

De saída do governo, PSDB chantageia professores na escolha das aulas para 2023

Falta de transparência e desrespeito com o ensino público marcam o processo de atribuição de aulas na rede estadual de São Paulo

O governador de São Paulo, Rodrigo Garcia. Foto: Divulgação/Governo de São Paulo
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Nalva é professora de Filosofia. Trabalha na rede estadual de São Paulo desde 1989, atuando há 16 anos numa mesma escola, no bairro paulistano de Pinheiros. Mestra e doutora em Filosofia e Educação, ela também leciona em uma universidade prestigiada no bairro das Perdizes, desenvolve pesquisas em Ensino de Filosofia e participa regularmente de conferências da área. Em razão de sua carreira como professora universitária e pesquisadora, essa profissional experiente poderia ter abandonado a sala de aula na escola pública. Mas optou por manter uma jornada reduzida – para a sorte de estudantes e do ensino de Filosofia na rede estadual.

Ocorre que Nalva e os outros 152 mil docentes da rede estadual paulista foram surpreendidos por uma mudança nas regras de atribuição das aulas para 2023 por parte da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP). Agora, aqueles docentes com jornada de 32 horas em sala de aula têm prioridade na escolha das aulas. Isso significa que professores efetivos mais experientes e com formação mais sólida, mas que tenham a chamada “jornada básica” de 20 horas semanais, correm o risco de ficar sem aulas nas escolas em que lecionam há anos e com as quais têm estreitos vínculos profissionais e afetivos.

Antes dessa mudança, a priorização para a escolha das aulas nas escolas se baseava numa pontuação que levava em conta, nesta ordem: 1) tempo de serviço na rede estadual e na escola; 2) titulação. Professores como Nalva – concursados, altamente titulados e com longos anos de serviços de qualidade prestados à educação paulista e a uma mesma escola – tinham prioridade na escolha das aulas em suas respectivas comunidades escolares. Nalva, portanto, era a professora de Filosofia titular de sua escola.

Com a mudança nas regras – agravada pela reforma do Ensino Médio que dizimou as aulas de Filosofia – Nalva se viu obrigada a ampliar a sua jornada de trabalho para poder manter seu vínculo com a escola em que dá aulas, e ainda assim não foi a professora com a maior pontuação em sua área naquela escola. Resultado: assumirá uma única aula de Filosofia em 2023, somada a 14 (catorze!) componentes curriculares diferentes: A cultura e seus sentidos, Ativismo digital, Cidadania digital, Cidadania global, Cidadania e justiça, Diálogos acerca dos Direitos Humanos, Eu e os outros, Juventude, economia e trabalho, Liberdade, determinismo e responsabilidade, Pensamento, política e trabalho, Sociedade e meio ambiente, Tecnologia, comunicação e cultura, Tópicos de cidadania, Trabalho e vida. Sendo humanamente impossível que qualquer professor consiga preparar 15 cursos diferentes para serem ministrados em apenas 20 horas-aula semanais, esta será uma oportunidade ímpar para a professora ensinar aos seus estudantes a construção ideológica do conceito de cidadania na sociedade neoliberal.

Na escola de Nalva, o docente mais bem pontuado na área de ciências humanas – e que, portanto, amealhou todas as aulas de Filosofia da ex-titular – é uma pessoa que está há anos em jornada integral não na sala de aula, mas em funções administrativo-burocráticas na Seduc-SP e na diretoria de ensino daquela região. Com as novas regras, este profissional teve prioridade para a escolha das aulas, passando na frente daqueles que nunca abriram mão do magistério.

É compreensível que, com a mudança de governo, profissionais da educação cedidos há anos e anos para cargos administrativos estejam preocupados com seu próprio futuro. Mas o que acontecerá se seus cargos em supervisões escolares, núcleos pedagógicos e outros departamentos da Seduc-SP forem mantidos? Suas turmas, então sem professores, ficarão à disposição de professores temporários (os chamados “categoria O”): primeiro dos mais bem pontuados e, depois, dos últimos da lista, docentes sem formação específica na área e, eventualmente, sem curso de Licenciatura concluído. Enquanto isso, Nalva, especialista com 33 anos de trabalho como professora de Filosofia na rede estadual, passará o ano de 2023 se contorcendo para lecionar 15 mirabolantes disciplinas ensardinhadas em sua jornada semanal de 20 horas.

É difícil imaginar maior nível de desrespeito aos professores e ao ensino público.

O caos na atribuição de professores tem nome

Na segunda-feira 26, professores se reuniram em protesto, na porta da Diretoria de Ensino de Mauá, contra as novas regras de distribuição das aulas . Horas depois, a manifestação foi feita na porta da Seduc-SP. Em resposta, o órgão garantiu que o processo de atribuição das aulas é transparente e pode ser acompanhado em todas as diretorias de ensino, dispostas responder dúvidas e questionamentos pontuais.

A ênfase do governo paulista na “transparência” é curiosa, já que, em vez de divulgar uma lista com a pontuação dos professores nas diretorias de ensino, como era praxe, a Seduc-SP agora faz isso através de um “sistema” coalhado de erros e inconsistências. Sem saber como os números são calculados, os usuários do sistema veem na tela uma pontuação diferente a cada dia, e, assim, milhares de professores da rede estadual ainda não sabem se terão aulas para dar no próximo ano.

Ao divulgar o protesto na frente da Seduc-SP nesta terça-feira 27, a TV Globo afirmou que os docentes seriam contra a obrigatoriedade da jornada completa (32 horas), quando, na verdade, os manifestantes se opõem à nova forma de distribuição de aulas, que desconsidera formação e experiência docentes. Privilegia pessoas com dedicação exclusiva à rede estadual, mas fecha os olhos para a qualidade de sua formação e para sua experiência efetiva em sala de aula. A finalidade do governo paulista é, obviamente, induzir os professores efetivos e temporários à escolha pela jornada completa. Por quê? Não para aprofundar os vínculos dos docentes com as suas escolas e nem para fortalecer as equipes escolares visando melhorar a qualidade do ensino estadual. A verdadeira preocupação da Seduc-SP é não repetir o fiasco da falta de professores no Ensino Médio, sistematicamente denunciada pela Rede Escola Pública e Universidade (REPU) ao longo de 2022.

O caos na atribuição das aulas é mais um efeito deletério da reforma curricular conhecida como “Novo” Ensino Médio (NEM), cuja implantação em larga escala foi iniciada na rede estadual paulista neste ano. Ao eliminar as disciplinas escolares a partir do segundo ano do Ensino Médio, sob o falso pretexto de “flexibilizar” e “modernizar” o currículo escolar, a reforma desorganizou as escolas e precarizou como nunca o trabalho docente. O caso de Nalva, que oficialmente lecionará 15 disciplinas em 2023, é o exemplo mais bem acabado da intensificação do trabalho acarretada pela reforma.

Na primeira semana de dezembro, testemunhei pessoalmente a agonia dos professores de uma escola estadual em Guarulhos. A equipe adora a escola, mas muitos não têm certeza se permanecerão lá no ano que vem. Quem pediu redução de carga para concluir a dissertação de mestrado (isto é, para melhor se qualificar!) ou quem concilia a rede estadual com a municipal ou privada para compor um salário melhor está sendo punido por essas escolhas. Agora, eles têm que mudar de escola ou assumir uma enormidade de disciplinas esvaziadas de conteúdo e com ementas risíveis. Para uma professora de Química, formada na USP, a escolha será entre ensinar os estudantes a fabricarem sua própria casa “sustentável” ou continuar dando as aulas de Química – só que em quatro escolas diferentes do outro lado da cidade.

Aquilo que à primeira vista pode parecer uma política de fortalecimento das equipes escolares é, na realidade, um novo rebaixamento das condições do trabalho docente na rede estadual de São Paulo, com o consequente esfacelamento de equipes docentes bem consolidadas. O diretor de uma escola estadual – um dos maiores exemplos de liderança educacional que conheço – me disse há algumas semanas que a melhor ajuda que a Seduc-SP poderia fornecer às escolas seria não atrapalhar seu funcionamento.

A reforma do Ensino Médio, nesse sentido, fragiliza não apenas a qualidade do Ensino Médio paulista, mas também as condições de trabalho de professores do Ensino Fundamental, profissionais com diploma de Pedagogia que, a partir do ano que vem, também serão obrigados a assumir uma miríade de microdisciplinas que compõem os chamados “itinerários formativos” do Ensino Médio.

E se um professor reclamar que o seu trabalho quintuplicou, a Seduc-SP estará pronta para lembrá-lo que oferece a tutela pedagógica de apostilas de qualidade temerária produzidas com o apoio do iFood, empresa sem qualquer vínculo com educação e com atividades lucrativas vinculadas à superexploração do trabalho uberizado de jovens com escolarização precária – ironicamente, o público-alvo da reforma do Ensino Médio.

Ao longo de 2022, emparedada pela opinião pública em razão da inegável precariedade na oferta dos itinerários formativos pela falta de professores e pela expansão desenfreada do ensino a distância, a Seduc-SP lidou com os problemas de diversas formas: negando, debochando e contratando professores sem a formação adequada. Não funcionou. No final de agosto, 8,7% das aulas dos itinerários formativos em Ensino Médio continuavam sem professores.

Sem realizar concursos públicos há dez anos, a solução para o problema da falta de professores encontrada pelo governo paulista – que se despede do Palácio dos Bandeirantes após 28 longos anos de notório desrespeito ao professorado – não é abrir concursos, melhorar os proventos ou qualificar a carreira dos profissionais da educação. É, sim, chantageá-los.

E, enquanto o estado mais rico do país escamoteia os efeitos perversos do NEM aviltando um pouco mais as já combalidas condições de trabalho dos professores, ainda há quem – nos círculos da transição governamental em Brasília – jure que a reforma do Ensino Médio, sob os auspícios do novo governo Lula, será “aprimorada” pelos governos estaduais.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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