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OPINIÃO

Dados sensíveis de alunos saíram da gaveta da escola para a nuvem; e agora?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Maíra Bosi, Maria Mello e Thaís Rugolo

Do Instituto Alana, especial para Tilt

21/02/2022 04h00

No começo deste mês, parte das famílias puderam retomar a rotina de aulas presenciais das crianças, por tanto tempo suspensas, devido à pandemia de covid-19. Ainda que o retorno às salas de aula não seja realidade em todos os estados e municípios do país, a tendência é que isso possa se concretizar, de forma simultânea ao necessário avanço da vacinação infantil. Sem jamais abrir mão das práticas de prevenção ao contágio, o direito das crianças à educação presencial deve ser compromisso prioritário de gestores, famílias e sociedade.

Também no início de fevereiro, celebramos o Dia da Internet Segura, uma iniciativa anual com objetivo de engajar atores públicos e privados na promoção do uso seguro, ético e responsável das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

Pouco antes, aconteceu outra iniciativa global, apoiada no Brasil pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados: a Semana Nacional de Proteção de Dados.

Além disso, em 10/02, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 115, que torna a proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, um direito fundamental.

E qual relação esses acontecimentos têm entre si?

Bem mais do que talvez possa parecer.

O retorno presencial às aulas anuncia o fim de um período tão desafiador, em que o ensino remoto permaneceu praticamente como única alternativa para a garantia do direito à educação. Apesar de a pandemia ter acelerado a introdução de TICs no dia a dia da sociedade e nas escolas, isso já vinha acontecendo de forma crescente, embora bastante desigual.

Nesse cenário, inclusive, o Instituto Alana, em parceria com Educadigital e Intervozes, elaborou em 2020 o guia A Escola no Mundo Digital - Dados e Direitos Estudantis. Disponível em um website interativo, o guia ajuda o público ainda não familiarizado com o tema a compreender o contexto atual de uso da internet e a importância da proteção de dados pessoais estudantis para além das tendências tecnológicas e do mundo online.

Mas afinal, o que são dados estudantis?

Nada mais do que todas as informações que identificam cada estudante e cuja coleta e uso estejam relacionados à sua vida escolar. Nome, endereço, dados sobre sua saúde (como alergias, doenças crônicas e tipo sanguíneo), gênero, raça e etnia, fotografia e impressão digital são alguns exemplos.

Se, anteriormente, essas informações ficavam restritas a pastas e gavetas físicas da secretaria da escola, hoje, muitas delas vão parar em "nuvens" e serviços geralmente fornecidos por gigantes da tecnologia —empresas que têm o lucro como principal objetivo e nem sempre são transparentes quanto ao uso dos dados pessoais que coletam.

A partir da inserção de tecnologias na rotina escolar e de ensino, novos dados estudantis entram em jogo.

Além de informações comportamentais coletadas em softwares de educação a distância, por exemplo, a instalação de câmeras e sensores nas escolas permite a captação de imagens das faces de toda a comunidade escolar —que, por sua vez, devem ser consideradas dados sensíveis.

E essa realidade já está muito mais presente do que imaginamos.

No ano passado, por exemplo, o município de Goiânia implementou um sofisticado sistema de reconhecimento facial nas escolas. A ferramenta digital, que atua de modo semelhante a um ponto eletrônico, é capaz de realizar o reconhecimento facial dos estudantes e, com isso, registrar a frequência dos alunos e funcionários, além de possibilitar a gestão pedagógica.

Além do caso de Goiás, 13 escolas municipais em Minas Gerais, uma escola estadual em Manaus e toda a rede municipal de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, também começaram a implantar sistemas de reconhecimento facial.

Ocorre que, em geral, o armazenamento e operacionalização dos dados coletados por essas tecnologias são de responsabilidade de empresas privadas.

O risco, então, é que tais informações pessoais sejam usadas para práticas exploratórias como predições comportamentais, perfilização com vistas ao direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes ou, ainda, processos de discriminação.

Cabe ressaltar que o uso de tecnologias tão invasivas, como o reconhecimento facial, também passa por uma questão ética em disputa, que tem levado, inclusive, algumas big techs a recuar no seu uso e comercialização e até mesmo a suspender pesquisas na área.

É verdade, por outro lado, que muitos dados estudantis devem ser compartilhados com escolas e outros entes públicos, como secretarias de saúde e educação.

Afinal, informações pessoais podem tanto ser usadas para proteção do estudante (ex: saber se tem uma alergia) quanto podem ajudar a formular políticas públicas (como o combate à evasão escolar) ou a identificar situações de vulnerabilidade ou violência pelas quais ele esteja passando.

Contudo, tais dados devem ser tratados com transparência e em respeito ao artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Pelo princípio da transparência, sempre que os dados de uma pessoa estiverem sendo coletados, ela —ou seus responsáveis, no caso de uma criança ou adolescente— deve estar ciente da finalidade para a qual seus dados serão destinados.

Além disso, dados pessoais infantis só devem ser solicitados ou coletados, em qualquer contexto, se privilegiarem o melhor interesse da criança.

Isso garante o fundamento primário de que todas as ações direcionadas à população infanto-juvenil (em âmbito público ou privado) sejam pautadas pelo que é melhor e mais adequado para as necessidades desse público, sobrepondo-se a outros interesses, inclusive os estritamente comerciais.

Por isso, cabe a pergunta: em que medida a coleta de dados biométricos e o uso de câmeras são mesmo necessários à segurança infantil e escolar ou, na verdade, se tornam instrumentos de vigilância, capazes de desnaturalizar o ambiente escolar em geral, afetando inclusive a autonomia progressiva de crianças e adolescentes e seu direito à privacidade?

O uso correto de dados estudantis garante que eles não se tornem instrumento de exploração comercial, protege crianças e adolescentes de riscos à sua saúde e integridade física e assegura sua privacidade e de toda a comunidade escolar.

Neste começo de ano letivo, é fundamental avançarmos sobre o debate em torno da conquista de um ambiente escolar promotor de direitos e de educação, livre de interesses comerciais de empresas e plataformas digitais. Afinal, escolas são espaços sociais que precisam proteger e ser protegidos de interesses incompatíveis com o direito à aprendizagem e ao desenvolvimento.