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Da laje a prêmio: O curso na favela que ajuda jovens a entrar na faculdade

O espaço improvisado na laje do UniFavela, no Complexo da Maré - Divulgação
O espaço improvisado na laje do UniFavela, no Complexo da Maré Imagem: Divulgação

Lilian Beraldo

Colaboração para Ecoa, de Brasília

24/09/2022 06h00

A colombiana Jéssika Canchón, de 26 anos, hoje é uma das alunas do curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) graças à ajuda fundamental que recebeu para conseguir se preparar para o vestibular.

Em 2020, no começo da pandemia no Brasil, ela conheceu a ONG Unifavela, um cursinho pré-vestibular criado na favela e para a favela. Depois de 1 ano de aulas, ela prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conquistou uma vaga na universidade federal.

A jovem conta que as aulas foram essenciais para a aprovação, já que ela desconhecia parte do conteúdo e o modelo da prova.

Atualmente, como forma de agradecimento à instituição, Jéssika atua como voluntária, nas quartas-feiras à noite, ministrando aulas de espanhol aos alunos.

"A Unifavela é um espaço de aprendizados e boas relações, onde a cidadania é exercida. É um lugar muito acolhedor e extremamente receptivo", afirma a colombiana.

Logo de cara, uma vitória: na primeira turma do cursinho, todos os que estudaram ali foram aprovados em universidades públicas do Rio de Janeiro.

De forma despretensiosa, em junho de 2018, um grupo de alunos se juntou para ajudar meninos e meninas a passarem nas provas de seleção para o ensino superior. Sem ter local para as aulas, o grupo se reunia em uma laje, na favela da Nova Holanda - uma das 16 comunidades que formam o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro.

Surgiu assim, a Unifavela que, este ano, foi a vencedora, na categoria Educação e Oportunidades, do prêmio "Sim À Igualdade Racial", do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).

"Fomos indicados a essa categoria. A banca examinou vários projetos e ganhamos. Foi maravilhoso, um reconhecimento muito bacana do nosso trabalho. Sinal de que estamos indo no caminho certo", avalia a coordenadora de comunicação institucional da Unifavela, Aghata Puche, 21 anos.

A premiação se destina a organizações que buscam promover a igualdade racial por meio da educação, seja criando novas formas de acesso, narrativas ou métodos de aprendizado.

Unifavela foi a a vencedora na categoria Educação e Oportunidades, do prêmio "Sim À Igualdade Racial" - Divulgação - Divulgação
Unifavela foi a a vencedora na categoria Educação e Oportunidades, do prêmio "Sim À Igualdade Racial"
Imagem: Divulgação

Viralizou nas redes

Ainda no início do projeto, a foto de um grupo de estudantes assistindo aula de forma precária chamou a atenção da imprensa e a Unifavela ganhou repercussão nacional - o que contribuiu para uma parceria com o Instituto Vida Real, uma ONG que também atua na Maré e cedeu uma sala para que as aulas pudessem ser ministradas durante dois anos.

As aulas, que ocorrem sempre no período noturno, se mantiveram até a chegada da pandemia, e o projeto, assim como o resto do mundo, teve de se adequar às regras sanitárias impostas e se adaptar ao ensino remoto.

"Foi uma época bem difícil porque não são todos os alunos que têm internet, que têm acesso a um notebook, a um telefone com internet ou a um tablet", lembra Ághata.

Nesse período, o projeto ganhou o edital da campanha "4G para Estudar" e pôde fornecer equipamento e rede móvel a alguns dos estudantes.

Foto de um grupo de estudantes assistindo aula de forma precária no início do projeto chamou a atenção nas redes sociais - Divulgação - Divulgação
Foto de um grupo de estudantes assistindo aula de forma precária no início do projeto chamou a atenção nas redes sociais
Imagem: Divulgação

Atualmente, a ONG atua em uma sala alugada, na avenida principal da Vila do João, outra comunidade que forma a Maré. No dia em que conversou com ECOA, Ághata anunciou uma novidade: o aluguel de um novo espaço para a Unifavela, uma sala ao lado da que já é usada hoje.

"É um espaço muito amplo onde serão realizadas atividades para crianças, atividades lúdicas. A gente quer ter também um cantinho de estudo, ter computadores, espaço para reunião. Vai ser um espaço multifuncional para atender todas as nossas demandas", explicou a jovem, destacando que a ONG procura parcerias para conseguir reformar o local e deixá-lo com "a cara da Unifavela".

Conjunto de favelas

Com 140 mil habitantes, o Complexo da Maré é considerado o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro. De acordo com o Censo Redes da Maré, realizado em 2020, apenas 23,4% dos moradores do local tinham terminado o ensino médio. Desse total, apenas 2,3% têm acesso à graduação e 1,4% conseguiram chegar ao final do curso superior.

"O objetivo da Unifavela é promover educação libertária e popular e fazer com que as pessoas alcancem não só a universidade, mas espaços que não são destinados originalmente para as favelas", avalia Ághata.

A UniFavela é um dos três cursos pré-vestibulares que atuam no complexo de favelas da capital carioca e tem, hoje, 15 alunos.

Unifavela é um dos três cursinhos pré-vestibular que existem no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro - Divulgação - Divulgação
Unifavela é um dos três cursinhos pré-vestibular que existem no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro
Imagem: Divulgação

Um desses estudantes é o fotógrafo freelancer Thiago Lins, 26 anos, que conheceu a instituição por meio de uma amiga que já frequentava as aulas e sempre o convidava para participar. "Passei dois anos enrolando, até que no começo desse ano eu consegui criar coragem para me inscrever e ir", revela.

Ele afirma que a Unifavela mudou o seu jeito de pensar sobre o futuro e permitiu criar conexões com professores e alunos que dão a ele uma nova perspectiva de vida.

"Quando se nasce dentro de uma comunidade, você já ganha o rótulo de que vai estar ali para sempre, e que não vai muito longe", destaca.

"Quando se é negro e gay, você é colocado como a pessoa que nunca vai construir uma carreira ou 'ser alguém na vida'. Parece que todo contratempo é uma derrota, e cada bloqueio de estrada é um sinal de que você escolheu o caminho errado: você não é adequado ou é uma falha naquele lugar. A Unifavela me mostrou que posso, sim, entrar numa universidade e que eu posso ir longe", completa Thiago que se prepara para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguir uma vaga na Universidade de Buenos Aires (Argentina) para cursar fotografia.

Nos quatro anos de existência, a Unifavela já teve 130 alunos. Desse total, 25 conseguiram aprovação em processos seletivos de ensino superior - quase 20% dos estudantes. No primeiro semestre deste ano, três alunos conseguiram ingressar em universidades públicas.

Novos passos

Em 2021, a Unifavela se formalizou como organização não governamental (ONG) socioeducativa e o que começou como um pré-vestibular passou a se expandir. Este ano, por exemplo, a entidade pretende lançar o Uni Letrinhas, um projeto de alfabetização infantil para as crianças da Maré.

Agora, a meta do projeto é criar o Uni Letrinhas, de alfabetização para crianças - Divulgação - Divulgação
Agora, a meta do projeto é criar o Uni Letrinhas, de alfabetização para crianças
Imagem: Divulgação

O projeto será destinado a crianças de 6 a 14 anos e o intuito é implementar práticas de leitura e escrita motivadas pelo ato de brincar. Com intenção pedagógica, a brincadeira pode ajudar no processo de aprendizagem e no desenvolvimento de áreas como coordenação motora, disciplina, expressão corporal, linguagem e socialização.

Para além das salas de aula, a UniFavela promove ações comunitárias que já impactaram mais de 700 famílias da Maré, com doações de cestas básicas, livros e brinquedos, além de realizações de ações culturais como saraus.

Entre essas iniciativas está o Maré de Natal que doa cestas básicas para as famílias que se encontram abaixo da linha da pobreza no território da Maré. Ao todo, o projeto já doou meia tonelada de alimentos para 50 famílias.

Em busca de uma educação antirracista, a ONG tem também o projeto Brinque Leitura que estimula o hábito de leitura nas crianças por meio da doação de livros e brinquedos que tenham o negro como protagonista. No total, a UniFavela já presenteou mais de 700 crianças.

Para contribuir com o projeto, escreva para contato@unifavela.com.br ou ligue para (21) 97900-9263