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Brasil

Cyberbullying desafia relacionamento entre pais, filhos e escola

Especialistas aconselham cuidado com as transformações provocadas pela tecnologia na educação e na família
Aplicativos de celular tornaram-se um complemento da socialização na sala de aula Foto: Divulgação
Aplicativos de celular tornaram-se um complemento da socialização na sala de aula Foto: Divulgação

RIO — Uma turma do oitavo ano do ensino fundamental de uma escola gaúcha discutia política. Uma menina protestou que a classe, formada por jovens de 14 anos, era nova demais para discutir o tema. Os garotos defenderam que o assunto fosse retomado.

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Um deles era Miguel (nome fictício), que manteve sua posição no grupo de WhatsApp da classe. Sua “oponente”, então, convocou 15 estudantes de outros colégios para a conversa no aplicativo. Nas quatro horas seguintes, Miguel sofreu ameaças físicas e leu ofensas sobre sua mãe. Seus colegas não se manifestaram. Chorando, ele procurou a família, que denunciou as ofensas à diretoria da instituição de ensino.

Miguel foi vítima de cyberbullying, mais uma demonstração do crescente impacto da tecnologia na família e na escola. Sua mãe, a fisioterapeuta Fernanda Fernandes, de 42 anos, destaca como os novos meios de comunicação mudaram o relacionamento entre pais e filhos e aumentou a pressão sobre o papel das escolas.

— A internet mudou a maneira como nos expressamos — ressalta. — A escola perdeu muros, porque a interação entre os alunos, depois das aulas, continua em aplicativos de celular. O bullying também pode surgir aí.

Após uma manifestação de hostilidade, todos devem agir imediatamente. É recomendado que o jovem atingido seja atendido em uma terapia, e que tenha incentivo para explorar uma área em que tenha mais talento e interesse, como artes ou esportes, porque uma boa performance o ajudaria a recuperar sua autoestima.

Os pais podem participar de grupos de apoio para entender melhor como lidar com a situação, e as escolas precisam criar equipes de suporte que orientem professores e monitores a readaptar o estudante em seu retorno à classe, indicam especialistas. Hoje, é comum ver erros como inscrevê-lo na mesma turma dos colegas responsáveis pelo bullying.

Fernanda observa a preocupação dos pais em controlar o celular dos filhos, mas acredita que intervir na intimidade dos jovens não é a saída. Para ela, a melhor estratégia é ensiná-los a agir no mundo virtual.

É a mesma opinião de Anderson Schreiber, professor titular de Direito Civil da Uerj. O advogado sublinha que, assim como os pais, a escola deve se envolver no modo como os jovens lidam com a tecnologia.

— Pouco tempo atrás, a postura das instituições de ensino era lavar as mãos, mas a responsabilidade pelo modo como os jovens acessam a internet não deve ser apenas da família — avalia. — Há quem acredite que, por lidar com pessoas em formação, os pais devem monitorar a atividade dos filhos nos aplicativos. É uma medida ruim, uma agressão à privacidade que pode gerar ainda mais bullying, desta vez pessoalmente. Além disso, o controle nunca será total, porque a cada hora surge uma nova forma de interação eletrônica.

FIM DA HIERARQUIA

A psicanalista Giselle Groeninga considera que a tecnologia está mudando a forma dos relacionamentos e a estrutura familiar. Antes, a relação dentro de casa era hierarquizada — havia poucos meios de comunicação, e eram os pais que escolhiam o que seria visto. Hoje, cada um pode mergulhar em uma mídia e ter seu próprio acesso à informação.

— Há mais respeito em relação às individualidades. A tecnologia é muito influente, seja de forma positiva ou negativa — pondera Groeninga, que é diretora de Relações Interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Segundo Groeninga, as famílias são tomadas por uma tensão geracional, já que os jovens, por terem nascido no “novo mundo” da tecnologia, transitam com mais facilidade pelas ferramentas da internet. No entanto, também são mais vulneráveis em relação ao seu conteúdo e sujeitos a práticas como o próprio cyberbullying.

Diante da adesão em massa a aplicativos e mídias sociais, é tentadora a opção de evitar o contato presencial, revela a psicanalista. Membros de uma família trocam as conversas tradicionais por “comunicados” no WhatsApp. Também trocam o relacionamento tradicional pela busca de curtidas no Facebook, em que tentam transmitir um estado constante de felicidade.

— O grupo de pertencimento mais importante é a família. As trocas afetivas possibilitam a formação da personalidade e a realização pessoal — defende. — O virtual, que é muitas vezes “fake”, jamais poderá substituí-la.

O advogado criminal Leonardo Villarinho pondera que o assédio moral não configura crime, mas o quadro é mais grave se forem constatados fatores como lesões corporais, ameaça ou violência.

— O constrangimento a alguém por violência pode resultar em multa ou detenção de três meses a um ano (no caso de maiores de idade) — alerta. — Já a ameaça pode levar a detenção de um a seis meses e multa.

Villarinho, porém, avalia que se deve pensar primeiro na prevenção contra a criminalidade, e só depois, se necessário, em punição. Há obstáculos que podem gerar debate em cada situação, como a dificuldade em diferenciar grosseria e a liberdade de expressão nas redes.