Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

Professores

Das más ideias do governo, nenhuma é tão estúpida quanto a Escola sem Partido

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Professores —qualquer que seja sua área, nível, atividade, salário e competência— são um silencioso, milimétrico mas onipresente, ponto de passagem para a civilização. Não há método de transfusão automático de conhecimento (alguma injeção na veia, por exemplo, ou cápsulas de saber ingeridas no café da manhã que por mágica nos permitam saber, sem esforço, que dois mais dois são quatro).

Na área da cultura (isto é, tudo que não vem impresso no DNA), o tempo todo alguém ensina a alguém, analogicamente, num processo que recomeça do zero a cada nascimento. Nada garante que o que se soube ontem se saberá amanhã, exceto se um intermediário nos ensinar novamente.

O retorno à barbárie é sempre uma possibilidade viva e concreta. Se alguém lê agora estas linhas, é porque uma legião de professores anônimos permitiu tanto a alfabetização de autor e leitor, quanto as técnicas de fabricação do meio (dos tijolinhos de barro ao papel, dali às telinhas de LED), passando pela compreensão dos processos argumentativos que dão ou não consistência (sempre flutuantes) ao que eu estou dizendo ou aos que me respondem.

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

E, é claro, tudo que aqui digo é passível de contestação: é a belíssima regra do jogo.

A sala de aula é o espaço de encontro e choque dos valores que fazem a civilização respirar. É uma fronteira social onde o indivíduo encontra os outros; onde os limites do casulo familiar, qualquer que seja, se abrem ao mundo; é uma passagem, não isenta de tensões, para a autonomia e a independência; é uma chave do processo civilizatório.

Mestres (bons, maus, chatos, fulgurantes, populistas, rigorosos, simpáticos, tímidos —o leitor certamente se lembrará de uma galeria deles e delas) são figuras centrais nesse processo, que ganhou relevância a partir do momento em que a ideia, então bizarra, de que todas as pessoas devem ler e escrever, independentemente de classe, trabalho, etnia, religião ou sexo, conquistou um sentido universal, numa espiral ascendente incontrolável.

Não trato aqui dos problemas da educação brasileira, gigantescos (e especialmente concentrados no invencível fracasso do nosso ensino médio). Mas, pela minha experiência de duas décadas de sala de aula, sinto que, de todas as más ideias do presente governo na área, nenhuma é tão excruciantemente estúpida e ofensiva aos professores como a chamada —ridícula até pelo nome— Escola sem Partido.

Cria-se um monstrengo conceitual ("marxismo cultural"), contra o qual templários de videogame investirão suas forças mentalmente binárias. O único efeito real da tal escola sem partido, se o Congresso, por uma insanidade final, resolver sacramentá-la, seria reduzir o espaço da sala de aula a cápsulas de controle de pensamento das distopias.

E não pela eventual sofisticação do intelecto de algum Tommaso Campanella ou um Thomas More redivivos, como talvez algum fanático do governo se imagine, mas pelo miolo pedestre do ressentimento, do espírito da violência e do horror à diferença. O sonho é moral e cívico: transformar cada estudante num espião, cada professor num covarde, cada chefe num mau caráter. Filmagens onipresentes colocariam manifestações contraditórias de inteligência no seu lugar.

Mas queria falar da presença dos professores na literatura; justo por ocuparem um espaço de forte confluência social, muitos são personagens de humanidade fascinante.

Acabo de ler em sequência três romances centrados em professores. O primeiro é do húngaro Sándor Márai, de quem sou leitor devoto: "A Estranha" (ainda inédito no Brasil; tenho a edição espanhola, "La Extraña", ed. Quinteto, 2010) —o severo professor Viktor Askenasi, numa viagem de descanso no Mediterrâneo, envolve-se numa paixão trágica por uma mulher.

O segundo é "Lucky Jim", do inglês Kingsley Amis (Todavia; trad. de Jorio Dauster). É ao mesmo tempo uma sátira deliciosa da vida acadêmica e uma comédia romântica no espírito otimista e libertário dos anos 1950. Sempre curioso por adaptações para o cinema, vi o filme de 1957 (direção de John Boulting), que é igualmente engraçado, puxando mais para o potencial pastelão da história.

Finalmente, li "Stoner", do americano John Williams (Rádio Londres; trad. de Marcos Maffei), uma narrativa maravilhosa, um bico de pena enxuto e exato, desenhado linha a linha sob a sombra do puritanismo, que sintetiza a vida de um professor sem brilho especial como o encontro silencioso e inelutável, de traços calvinistas, entre destino e tragédia.

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