Por Desirèe Assis*, g1 Bauru e Marília


Crianças de escola estadual escrevem cartas ao professor da Unesp esfaqueado e xingado de 'macaco' — Foto: Instragram /Reprodução

O professor do curso de jornalismo da Unesp no campus de Bauru (SP), que foi esfaqueado e xingado de “macaco” no dia 20 de novembro de 2019, Dia da Consciência Negra, ganhou cartas com mensagens de conforto dos alunos da Escola Estadual José Viranda.

Ao g1, Juarez Xavier disse que, no último dia 27, ao final de uma reunião dentro do campus, outra professora da universidade contou sobre o projeto dos alunos e entregou as cartas para ele.

“Foram várias cartas, em diversos formatos, coloridas. Comecei a ler as cartas e percebi o grau de indignação dos meninos e meninas com a violência, com a forma com que a pessoa tentou justificar a agressão”, afirma.

Professor da Unesp Bauru Juarez Xavier foi esfaqueado e diz ter sido vítima de racismo no Dia da Consciência Negra — Foto: TV TEM/Reprodução

O ato dos alunos representou para Juarez uma “chama de esperança”, ao ver que crianças e adolescentes também não estão dispostos a se acomodar com violências racistas, semelhantes a que o professor vivenciou em 2019.

“Eles estão fazendo a construção da sua vida adulta. São jovens que se propuseram a escrever para uma pessoa que eles nunca tinham visto na vida. É muito bonito ver que as crianças e adolescentes têm capacidade de ter empatia e de colocarem no papel. Escrever uma carta é um processo de consolidação de ideias. São pessoas que não estão dispostas a conviver com a reprodução da violência étnico-racial diária. Fui agradavelmente surpreendido”, salienta.

Questionado sobre o conteúdo das cartas, o professor pontuou alguns aspectos principais, como a solidariedade, fruto da indignação frente às ofensas de cunho raciais (leia abaixo).

Crianças de escola estadual escrevem cartas à professor da Unesp esfaqueado e xingado de 'macaco' em Bauru — Foto: Juarez Xavier /Arquivo pessoal

Crianças de escola estadual escrevem cartas à professor da Unesp esfaqueado e xingado de 'macaco' em Bauru — Foto: Juarez Xavier /Arquivo pessoal

Entre as mensagens, crianças escreveram: “Fiquei muito triste por saber o que aconteceu com você. Você é uma pessoa igual a todo mundo. Isto que ele fez é racismo”, diz uma menina.

Outra criança enfatiza: “Como negro, você passa por muitas dificuldades, como estudo, problemas familiares, dificuldade de achar um emprego. Mas, você venceu todos eles. Não deixe pensar que não vai vencer mais essa, porque você já venceu."

Crianças de escola estadual escrevem cartas à professor da Unesp esfaqueado e xingado de 'macaco' em Bauru — Foto: Juarez Xavier /Arquivo pessoal

Crianças de escola estadual escrevem cartas à professor da Unesp esfaqueado e xingado de 'macaco' em Bauru — Foto: Juarez Xavier /Arquivo pessoal

Em letras grandes, no topo de uma carta, uma criança escreveu: “Diga Não Ao Racismo”. Outra menina, que também é negra, reforçou: “Isso foi um acontecimento horrível, tenho certeza. Eu também sou negra. O senhor é muito corajoso e destemido. E que você não passe mais por isso."

O professor também afirmou que acredita que os educadores devem apresentar conteúdos antirracistas e antissegregacionistas, como essa atividade, durante a educação básica, ainda na infância e adolescência, para o melhor processo de socialização da criança.

“No processo educacional é indispensável que as crianças tenham acesso a esses conteúdos, a prática democrática e que procurem experimentar a questão do respeito à diversidade de gênero e aos direitos humanos. Logo no início do processo educacional, quando as crianças vão ter vivências coletivas, é importante apontar que não é normal ações que violam o respeito. Quanto antes as crianças tiverem contato com esses valores, melhor para a formação da sua cidadania e sua perspectiva de futuro, o que é previsto na Constituição Brasileira”, garante.

'Materializar a consciência'

Professora de Bauru responsável por estimular seus alunos, Nilva Aparecida Gonçalves Pereira — Foto: Nilva Aparecida Gonçalves Pereira /Arquivo pessoal

A professora Nilva Aparecida Gonçalves Pereira, responsável por guiar os alunos no projeto das cartas, contou ao g1 que trabalhou na escola estadual, em Bauru, por nove anos, sendo que encerrou as atividades em 2021.

O trabalho com a turma do sexto ano do ensino fundamental foi realizado em 2019, ano em que o professor sofreu as agressões. Atualmente, conforme a professora, os alunos cursam o ensino médio.

“Na época, eles ficaram curiosos se o professor havia recebido as cartas. Contudo, ele só pôde receber agora. O que me motivou a fazer a atividade é o compromisso que eu tenho com a temática antirracista, sobretudo, a cultura afrodescendente, a qual eu lido na minha pesquisa. Eu fiz especialização e mestrado voltados para a cultura dos negros”, expõe.

Professora de Bauru responsável por estimular seus alunos, Nilva Aparecida Gonçalves Pereira — Foto: Nilva Aparecida Gonçalves Pereira /Arquivo pessoal

Na visão da professora, ensinar os alunos sobre a luta antirracista é de suma importância. Isso porque, conforme ela, o quanto antes transmitir esses conhecimentos, melhor para a formação dos pequenos, a fim de evitar a disseminação de discursos racistas e preconceituosos no geral.

“É preciso iniciar esse trabalho o quanto antes. O que me compete é atuar na escola para evitar esses discursos. Sempre procuro colocar no meu plano de ensino atividades que me deem abertura para esses temas”, reforça.

Atividade provérbios africanos em torno do baobá proposto pela professora de Bauru, Nilva Aparecida Gonçalves Pereira — Foto: Nilva Aparecida Gonçalves Pereira /Arquivo pessoal

A atividade, segundo a professora, foi uma resposta em solidariedade e apoio ao que o professor sofreu. Justamente por surgir de uma necessidade, não foi pré-elaborada.

“Eu tive a intenção de fazer a discussão com alunos. Trabalho com contos africanos que são motes para que eu possa fazer outras discussões, como representatividade e identidade. Eu já estava fazendo esse trabalho com o sexto ano, naquele momento. Uma aluna quem trouxe essa questão na aula e eu abri para que outros dessem seus posicionamentos”, explica.

“Na escola pública temos uma quantidade muito maior de pessoas negras. Então, quando fazemos esses trabalhos com essas crianças, elas passam a se identificar e, de certa forma, a ver como esses acontecimentos impacta o pensamento e posicionamento delas. Foi uma atividade pulsante em termos de sala de aula. Minha proposta foi materializar a consciência do que eles pretendiam”, conclui.

Durante a discussão, a professora lembra que a maioria das crianças se demonstrou indignada com o ocorrido. Por acreditar que apenas levantar o assunto em sala não foi suficiente, Nilva propôs a elaboração das cartas, que foi bem recebida pelos alunos.

“Eu elaborei a ação para que confortasse os alunos, porque percebi que só a discussão não foi suficiente. Outro objetivo foi dar sentido à minha postura como professora que traz uma temática antirracista para a minha atuação dentro da sala de aula”, ressalta.

Vítima de racismo

Professor da Unesp Bauru Juarez Xavier ao lado do seu advogado Maurício Ruiz — Foto: TV TEM/Reprodução

Juarez foi agredido e chamado de “macaco” quando saía de um supermercado, em 2019. Depois disso, Juarez e o agressor brigaram e o professor foi atingido com golpes de canivete. Uma testemunha que ajudou a socorrer Juarez disse na época ter ouvido o xingamento.

À época, o caso foi registrado pela Polícia Civil como lesão corporal e injúria racial. O agressor Vítor dos Santos Munhoz, que chegou a ser preso, foi liberado para responder o processo em liberdade mediante pagamento de fiança de R$ 1 mil.

A primeira audiência do caso foi realizada de forma online no dia 20 de setembro de 2021. Segundo o Tribunal de Justiça, foram ouvidas testemunhas e a vítima, que foram arroladas pelo Ministério Público, que representa a acusação. Já a defesa de Vítor não indicou testemunhas para a audiência.

Professor da Unesp é esfaqueado e diz ter sido vítima de racismo no Dia da Consciência Negra — Foto: TV TEM/Reprodução

Nas redes sociais, o professor Juarez informou que tentaria mudar a tipificação do crime para “racismo”. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o crime pode ser equiparado ao racismo e ser considerado imprescritível, ou seja, passível de punição a qualquer tempo.

O advogado de Juarez, Maurício Ruiz, disse que o agressor havia cometido injúria racial e tentativa de homicídio. Segundo ele, se não fosse a intervenção de terceiros, o professor poderia ter sido assassinado.

Ainda naquele ano, a defesa de Vitor alegou que ele foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide e é considerado incapaz. Segundo a advogada Kelly da Silva Alves, a linha de defesa é voltada para comprovar que o réu não tem condições de ser responsabilizado pelo crime por sua condição mental.

Professor fez postagem sobre a primeira audiência desta segunda-feira em Bauru — Foto: Instagram/Reprodução

Quatro anos após o episódio sofrido, Juarez destaca que continua indignado com o episódio. Contudo, também propõe que percebeu uma mudança significativa na sociedade, com relação ao aumento de denúncias de crimes de ódio, como intolerância religiosa, misoginia e xenofobia.

Juarez ainda diz que vive um “misto de indignação com esperança”. Isso porque, apesar de saber que o agressor não foi responsabilizado pelo crime, acredita que, por outro lado, houve uma aceleração da compreensão da magnitude dos direitos da população negra na sociedade.

“Existe uma chama ardente e acesa da indignação. Ninguém deveria passar por uma experiência de ter negado seus direitos a dignidade, valores humanos e cidadania. Acho que houve uma mudança significativa na sociedade brasileira em relação a esses crimes. Tenho a impressão de que não é que o racismo, LGBTfobia e machismo aumentaram no país, mas sim, as pessoas começaram a acreditar na abertura de um processo jurídico. O aumento das denúncias provoca mudanças nos agentes públicos e isso é extremamente positivo”, expõe.

Professor em Bauru, Juarez Xavier integra Comissão Permanente para Assuntos Étnicos e Raciais da Unesp — Foto: TV TEM/Reprodução

Preconceito na universidade

O professor Juarez é militante do movimento negro. Com mestrado e doutorado pela USP, ele é professor da Unesp Bauru e coordenador do Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (Nupe).

Ao g1, ele relatou sobre preconceito que sofreu quando era aluno e também quando teve sua primeira experiência de ser vítima de racismo como professor, em 2015. A frase “Juarez macaco” foi achada em um dos banheiros da Unesp Bauru.

Mensagens racistas foram escritas em um banheiro da Unesp em Bauru — Foto: Juarez Tadeu de Paula Xavier / Arquivo pessoal

Na época, segundo o professor, o que mais o marcou foi o fato de que as pichações foram achadas no banheiro contra ele e também contra mulheres negras (veja acima).

"Foi a covardia do ato que me marcou. Pichação no banheiro da universidade, com ofensas extensivas aos estudantes e ao pessoal da limpeza. A forma vil e agressiva contra mulheres simples, trabalhadoras braçais", afirmou na época.

Após as pichações, uma comissão de professores na Unesp foi formada para investigar as frases encontradas no banheiro. Os professores ouviram algumas pessoas durante quatro meses, mas não identificaram os autores.

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