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Brasil Educação

Crianças com deficiência só têm atendimento educacional especializado em uma a cada cinco escolas públicas

Escolas públicas já tinham acesso restrito ao AEE, que serve para derrubar barreiras ao aprendizado dessas crianças, antes da pandemia e situação piorou com ensino remoto
Cátia Telles do Couto com os filhos, João Victor, de 12 anos, e Miguel, de 9; sem atendimento especializado, os meninos ainda não aprenderam a ler e escrever Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Cátia Telles do Couto com os filhos, João Victor, de 12 anos, e Miguel, de 9; sem atendimento especializado, os meninos ainda não aprenderam a ler e escrever Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

RIO - Só uma em cada cinco escolas públicas no Brasil possui atendimento educacional especializado (AEE) para crianças com deficiência. Além disso, 1.117 municípios não contam com nenhum colégio com esse tipo de oferta. Os dados são do Censo Escolar de 2020, de antes da pandemia, que piorou ainda mais o atendimento a esses alunos.

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Pesquisa da Fundação Carlos Chagas com a UFABC, a Ufes e a USP, realizada em junho de 2020, mostrou que 41% dos professores acharam que o desempenho dos alunos com deficiência caiu na pandemia, e 28% afirmaram que o material ofertado não tinha versão com acessibilidade.

— Toda escola devia ter o AEE. Esse atendimento trabalha com aquilo que, num ambiente escolar, está sendo uma barreira ao aprendizado das crianças — afirma Maria Teresa Mantoan, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped), da Unicamp.

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Na prática, crianças ficam sem atendimento ou alunos de diferentes escolas são reunidos num único colégio para o AEE, o que, segundo Mantoan, desvirtua a concepção desse tipo de atendimento.

— O AEE não é um serviço itinerante. Tem que estar sediado na escola. O professor do AEE tem que conhecer o docente da classe regular para identificar as barreiras e, a partir daí, entender os melhores recursos para derrubá-las — diz.

Exclusão

O AEE não substitui o ensino regular. Ao contrário, o complementa e o auxilia. Há, por exemplo, ensino de libras, informática acessível, braile, desenvolvimento da vida autônoma, uso de recursos óticos e não óticos), desenvolvimento de funções cognitivas e técnicas para orientação e mobilidade. Os estudantes frequentam essas aulas se as famílias quiserem no turno contrário ao da sala regular.

Sem a eliminação dessas barreiras, crianças ficam sem estudar, como os dois filhos de Cátia Telles do Couto, 38 anos. Eles têm deficiências cognitivas graves e hiperatividade. No entanto, sem atendimento especializado, João Vitor, de 12 anos, e Miguel, de 9, ainda não aprenderam a ler ou escrever.

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— Eles nem entendem as atividades. Então, não estão fazendo as aulas remotas — conta Cátia, moradora de Sepetiba, Zona Oeste do Rio.

Em 2019, 29.980 escolas municipais e estaduais do país possuíam AEE. No ano passado, o número caiu para 28.867 de um total de 138.816 colégios. Por outro lado, a quantidade de alunos com deficiência incluídos em turmas regulares cresceu de um ano para o outro: passou de 969.390 para 1.020.236, o que é uma tendência desde 2009 e, segundo especialistas em educação especial, uma ótima notícia.

— O sistema de ensino brasileiro, definido na LDB (Lei de Diretrizes e Bases) de 1996, é inclusivo por natureza. Ele não admite escola especial, nem classe especial (restritas a crianças com deficiência) . Por isso, escolas e turmas que ainda funcionam assim são irregulares, assim como a política de educação especial lançada por Bolsonaro no ano passado — lembra Mantoan.

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Em outubro, o presidente lançou a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), que estimulava a criação de turmas especiais. O programa, no entanto, foi suspenso pelo STF, em dezembro.

O atendimento especializado precário para crianças com deficiência se estendeu ao ambiente virtual após a Covid. Segundo Regina Mercurio, formadora de educação inclusiva no Instituto Rodrigo Mendes, resolver os entraves que impedem a aprendizagem já era um desafio na educação presencial que se ampliou no remoto.

— Nesse ambiente, as próprias ferramentas para trabalhar não são acessíveis em grande parte. Os recursos mais legais precisam de internet, mas parte gigantesca do Brasil não tem acesso. Por isso, muitos municípios decidiram usar propostas pedagógicas impressas — diz Mercurio.

Alternativas

Foi dessa forma que a escola do filho de Rita Sousa, 28, de Pimenteiras, no Piauí, tem enviado as atividades para Guilherme, de 9 anos. Ele tem catarata congênita e estrabismo, que afetam severamente sua visão.

— A escola manda o material impresso sem estar adaptado. Eu e o pai dele temos que passar o conteúdo, mas não temos treinamento. Então fica muito difícil. Na escola, ele tinha uma professora especializada — conta Rita.

Mercurio afirma, no entanto, que alguns municípios conseguiram organizar a oferta de AEE estimulando uma parceria entre o professor da sala comum com o do atendimento especializado, mesmo quando não havia ferramenta on-line.

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Foi o caso, por exemplo, de Cumaru, Pernambuco. Os professores do AEE foram de porta em porta das crianças, mantendo o distanciamento, para seguir com o AEE.

O caso foi relatado pela coordenadora do programa de educação inclusiva do município, Eliane Maria Lima, em artigo na revista acadêmica Sala de Recursos, especializada nesse tipo de atendimento.

Segundo Luciana Reis Pereira, professora de educação especial e uma das editoras da revista Sala de Recursos, os professores estão ainda aprendendo a fazer a educação remota. Por isso, diz, algum prejuízo da pandemia será inevitável.

— Vamos demorar um pouco para recuperar. Esses alunos precisam de apoio pedagógico, emocional, e motivação. A escola é um fator motivacional muito grande. Assim o retorno será um resgate do que foi perdido— diz Pereira.