Por Leonardo Barreto, g1 SE


Intimação enviada à criança no interior de Sergipe — Foto: Arquivo pessoal

O artigo 105 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que se uma criança é acusada da prática de ato infracional, que se apliquem medidas de proteção, entre elas, o apoio, o acompanhamento e o acolhimento por serviços sociais como o Conselho Tutelar, mas um caso inusitado foi registrado no município de São Francisco, região Norte de Sergipe.

Informações obtidas com exclusividade pelo g1 apontaram que duas crianças, uma de 10 e outra de oito, teriam discutido e a mais nova chamou a mais velha de ladrão. Os avós da criança tomaram como uma afronta e registraram Boletim de Ocorrência. O caso foi parar na delegacia, mas na hora da intimação o escrivão de plantão não tinha o nome dos responsáveis pela criança de oito anos, então optou por colocar no documento apenas o nome do menor.

A intimação foi encaminhada à casa do garoto, de apenas oito anos, com o nome dele. O pai do menino custou a acreditar no que estava vendo. Ele contou que o filho passou a enfrentar problemas emocionais por conta da situação.

“Ele não sabe se defender. O delegado me ligou e informou que meu filho estava sendo intimado a ir à delegacia do município para prestar esclarecimentos sobre uma briga na escola. Eu questionei o fato dele estar sendo intimado, mas o delegado confirmou a situação”, disse o pai do menino, que não será identificado.

O pai de uma outra criança, que teria visto a discussão entre os dois meninos, também foi intimado, e segundo ele, foi orientado a levar o filho. “Fui à delegacia, mas não levei meu filho. Desde o dia que essa intimação chegou aqui é um incômodo para ele. Isso não é caso de ir para delegacia”, lamentou.

A Secretaria da Segurança Pública de Sergipe (SSP-SE) informou que mesmo constando na intimação apenas o nome da criança, ela deveria comparecer à delegacia acompanhada dos pais para prestar esclarecimentos, durante uma audiência de conciliação com os envolvidos.

O advogado especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, pontuou que um caso, como o citado na matéria, deveria ser encaminhado pela polícia para o Conselho Tutelar e para Vara da Infância e Juventude.

Ariel de Castro Alves - advogado, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. — Foto: Arquivo Pessoal

“Nesse caso a criança foi submetida a uma situação vexatória. Além disso, é caracterizada a usurpação de funções públicas, já que eles estão realizando atividades que são de competência do Conselho Tutelar e da Vara da Infância e da Juventude”, falou o advogado

Ele ainda defendeu a investigação dos responsáveis pela intimação por órgãos de controle externo da atividade policial.

A juíza Iracy Mangueira, da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Estado de Sergipe, disse que é atribuição a polícia investigar os fatos, mas que isso tem que se conformar com todo ordenamento jurídico socioeducativo. Ela também disse que o fato chama atenção.

Iracy Mangueira - juíza da Coordenadoria da Infância e da Juventude — Foto: Reprodução TV Sergipe

“Eu diria que estamos acostumados a judicializar o cotidiano. Então, em casos de menor gravidade, a gente enquanto Coordenadoria, recomenda, como também estabelece a legislação, a adoção de práticas restaurativas, a mediação, e isso pode acontecer no ambiente escolar”, detalhou a magistrada.

Ela ainda pontuou que o Tribunal de Justiça de Sergipe tem articulado a implementação do Núcleo de Atendimento Integrado (NAI), estratégia que permite a diminuição do risco de revitimização de crianças e adolescente.

“O TJ tem articulado com outros órgãos como Conselho Tutelar, Ministério Público e Polícia Militar, a possibilidade dessa oferta conjunta. Então, a delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, junto com outros órgãos deveriam funcionar fazendo um atendimento integrado, identificando a melhor forma de fazer o atendimento e através de qual profissional”, ponderou a juíza.

A psicóloga social. Pesquisadora e membro do Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, Dayse Bernardi, pontuou que a situação é grave e que o episódio entre duas crianças no ambiente escolar foi colocado como um “crime”.

Dayse Bernardi - membro do Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária. — Foto: Arquivo pessoal

“A atitude policial extrapolou suas funções ao acatar a denúncia dos avós. Portanto, o fato em si indica uma visão distorcida da infância e coloca ambas as crianças em uma situação adultatizada. Um desentendimento infantil tomado como uma ação passível de punição externa, fora do alcance de seus responsáveis legais e da própria escola. Essas crianças podem ser estigmatizadas e marcadas como infratores. Foi um passo dentro de uma escalada social de aumento da violência e clamor por ações coercitivas, punitivas de uma sociedade controladora”, explicou a psicóloga social.

Ela ainda completou que as crianças podem sofrer impactos psicológicos com a situação.

“As crianças podem se ver desprotegidas com a desautorização de seus pais e educadores, sentirem-se pequenos bandidos sem futuro. Podem ser aguçadas nelas ações violentas e ao mesmo tempo medo, culpa, retração social, sofrimento psicológico, desamparo, desinteresse pela escola, retração nas relações com os colegas e mais animosidade”, avaliou.

Seja em casa, na escola, ou até mesmo nos ambientes dos órgãos que compõem o sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente, especialistas ouvidos pelo g1 nesta matéria, apontam que um caso como o registrado em São Francisco, revela a necessidade de se tratar crianças e adolescentes com os cuidados necessários e estabelecidos pela legislação.

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