Crescendo diante da tela: como um ano vivido online mudou nossos filhos

Como muitos pais enfrentando um outro aspecto da pandemia

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Por Heather Kelly
Atualização:
Durante o fechamento das escolas na pandemia de covid-19, crianças e pais tiveram de se adaptar a diferentes obstáculos para manter o aprendizado Foto: Michelle V. Agins/The New York Times

SÃO FRANCISCO – Como muitos pais enfrentando um outro aspecto da pandemia, Iris Lowenberg-Lin não tem banda larga para gerir o tempo que seus dois filhos mais velhos passam na frente da tela. Ela e o marido trabalham na área da saúde na Bay Area – ela é enfermeira e ele é médico, atuando em um centro de atendimento de urgência. Há 18 meses nasceu, “de surpresa”, seu terceiro filho. Mas cedendo um pouco do controle, à primeira vista conseguiram encontrar o lado bom e o ruim de deixar os filhos usando a tecnologia.

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Seu filho de seis anos se adaptou rapidamente. Aprendeu a ler no primeiro ano escolar, embora muitos da sua classe tivessem aulas pelo Zoom, mantém contato com os amigos pelo FaceTime e joga o Roblox, e ainda tem aulas de bateria online, assiste a alguns programas que gosta e ainda passeia de bicicleta e joga perto de casa.

A adaptação foi mais difícil para o que está no terceiro ano, que sente falta dos amigos. Quando ele começou a se queixar de dores de cabeça, no final do ano passado, ela percebeu que a atividade online estava tendo um impacto físico sobre o garoto. Ele ainda passava um tempo na frente do computador, mas os pais exigiram que fizesse mais pausas e saísse ao ar livre, evitasse ficar com fome, desidratado e com insônia, fatores que costumam desencadear dores de cabeça.

“No caso de crianças mais velhas, esta é uma fase muito difícil porque elas lembram o que é realmente a escola e agora devem fazer tudo diante da tela”, disse Lowenberg-Li, que diz que as coisas são mais fáceis para seus filhos menores. “Como são ainda muito pequenos, eles se habituam. Não conheceram nada diferente”. 

Tempo de tela

“Tempo de tela” – um conceito que pauta meticulosamente, inquieta e aterroriza os pais, não é mais considerada uma abordagem válida num mundo de pandemia, onde a maneira como vivemos nossas vidas vem sendo completamente redefinida.

Desde que as escolas começaram a ser fechadas há cerca de um ano, as crianças vêm se adaptando, aprendendo e ficando criativas na maneira que utilizam a tecnologia. A realidade da sua vida cotidiana mudou totalmente, como também sua relação com a tela. Para algumas, a tecnologia é uma tábua de salvação mantendo-as em contato com os amigos e as ajudando a manter sua capacidade social, uma alternativa bem-vinda à escola presencial. Para outras, é uma promessa frustrada – incapaz de compensar as defasagens na sua educação, os salários perdidos dos pais e sua própria saúde mental.

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O dilema também provocou um balde de água fria em algumas promessas do setor de tecnologia quanto ao que pode ser alcançado com os dispositivos e a internet, e que desconsiderou a realidade de se viver em meio a crises concomitantes.

Conversas com mais de uma dezena de famílias e especialistas em desenvolvimento infantil leva a concluir que as consequências deste experimento involuntário de passar muito tempo diante da tela ainda são nebulosas e levará anos para compreendermos seus efeitos.

Um ano em que todos recorreram à tecnologia tem nos mostrado que o valor, ou perigo, dos aparelhos têm menos a ver com as próprias telas reluzentes e mais com a maneira com são usadas. O que importa mais, ao que parece, são os sistemas de apoio disponibilizados para as crianças e seus pais.

Especialistas têm evitado termos como “vício”, criando mais um pânico moral que parece acompanhar qualquer tecnologia que tem impacto sobre as crianças. A mudança de visão ocorre quando permitir a elas mais tempo de tela não é uma escolha, mas uma necessidade das famílias.

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Durante todo o ano passado, pessoas de todas as idades passaram muito mais tempo ligados no computador. Muitas das maiores escolas do país continuam fechadas ou oferecendo uma combinação de aprendizado presencial e remoto, e as crianças com acesso a um dispositivo vêm usando celulares, computadores das escolas e tablets de mais maneiras e por mais horas.

A empresa de monitoramento Bark, que pais e escolas utilizam para monitorar o uso da internet por mais de cinco milhões de crianças, constatou um aumento de 144% no número de mensagens online que as crianças enviaram e receberam em 2020, comparado com o ano anterior. São mensagens em sites de rede social, Gmail e outros.

Por outro lado, um estudo do Pew Research Center divulgado em outubro concluiu que 63% dos pais com filhos em idade escolar hoje estão mais preocupados com o tempo de tela das crianças do que antes da pandemia. Mais da metade dos pais interrogados disse se preocupar com a capacidade de os filhos manterem as amizades e outras relações sociais e também com seu bem-estar emocional. Os mais inquietos com as horas a mais nos computadores e aparelhos móveis são de famílias de maior renda.

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Os pais passaram o ano passado em estado de emergência, tentando fazer frente aos dias sem escolas presenciais ou, com frequência, à falta de creches. As famílias começaram a usar mais as telas para continuar em contato com familiares que não podiam visitar, apresentar os bebês para os avós e propiciar às crianças a sua única possibilidade de interação com os amiguinhos.

De início, os especialistas concordaram que não era o momento de as pessoas ficarem estressadas com o excesso de videogames, mas para todos fazerem o melhor possível e terem paciência.

Início do ano letivo

A situação mudou quando o semestre começou e, para muitos, a escola virtual teve início a sério. No caso de muitas escolas, as aulas eram todas, ou em parte, remotas, com as crianças se reunindo com professores e colegas por aplicativos de videoconferência como o Zoom.

Pesquisas iniciais sugerem que as aulas remotas prejudicaram todas as crianças, mas em graus variados. Segundo um estudo realizado em dezembro pela empresa de consultoria McKinsey & Co., a mudança para as aulas remotas, durante a primavera, resultou num atraso em matemática de um a três meses no caso dos alunos brancos, e de três a cinco meses para os alunos não-brancos.

“A covid-19 tem sido uma catástrofe em cascata para o ensino e em particular para as crianças com mais problemas de aprendizagem, mas em que ponto estaríamos sem a possibilidade do aprendizado, e mesmo o entretenimento, online?”, indagou Ann Masten, professora de desenvolvimento infantil na universidade de Minnesota.

Para ela, as telas não são inerentemente boas ou más, mas o problema é para o que estão sendo usadas e o que estão substituindo. No ano passado, disse ela, as telas tornaram possíveis muitas coisas, como o ensino e a comunicação, que foram importantes para as pessoas enfrentarem um período de isolamento.

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Mas sua preocupação é que a pandemia agrave as disparidades no caso das crianças que já estavam numa situação difícil antes de as escolas serem fechadas. Aquelas cujos pais perderam o emprego, ou o imóvel, que lutam com a insegurança alimentar ou o racismo. Ou para as crianças cujas necessidades não podem ser atendidas remotamente.

Em São Francisco, onde o ensino nas escolas públicas ainda é totalmente remoto, não há nenhuma data para a volta das aulas presenciais e os pais de crianças com necessidades especiais estão sobrecarregados e desamparados. Uma mãe, que falou sob condição de anonimato porque temia que seu filho enfrentasse o estigma de seu diagnóstico, está em casa com seus três filhos o dia todo, tentando conduzir seu filho do meio com diferenças neurológicas por meio do aprendizado à distância.

Inteligente e curioso, o menino de oito anos tem dificuldades emocionais e de relacionamento, mas antes da pandemia vinha fazendo progressos. Ele tinha o apoio de profissionais na escola e, pela primeira vez, começava a fazer amizade com colegas, tendo até sido convidado para algumas festas de aniversário.

Agora, disse a mãe, o garoto vem regredindo acentuadamente. Recusa-se a participar de sessões de fonoaudiologia quando não conseguiu se conectar com o novo professor. Ele diz às vezes que as outras crianças na classe arregalam os olhos para ele. E sua irmã mais velha começou a imitar suas atitudes de enfrentamento de situações difíceis, como gritar muito alto.

“Eles não conseguem acessar os serviços adequadamente pelo computador, literalmente não funciona”, disse a mãe.

Há muita coisa que os professores conseguem fazer por meio da tela, disse Kristen Hawley Turner, professora e diretora de educação de professores na Drew University. Ela tem trabalhado com educadores durante a pandemia sobre o envolvimento maior com seus alunos.

“Tem sido difícil desde o primeiro dia e está cada vez mais complicado lidar com o envolvimento do aluno através de uma tela. É necessário muito planejamento para manter os estudantes envolvidos. Estamos retornando a métodos que, em pesquisa educacional, sabemos que não são os melhores para uma criança aprender”.

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No caso de muitas crianças, cujos pais não podem ficar em casa, vigiá-las e orientá-las, a escola remota está longe de ser adequada.

Enquanto Telanta Ridley estava trabalhando em período integral como supervisora de limpeza de um hotel em Atlanta, seus cinco filhos, entre 10 e 17 anos de idade, cuidavam um do outro e de si mesmos.

“Era horrível porque meus filhos nunca tiveram notas péssimas na escola. Mas então começaram a ter nota zero. Eu recebia telefonemas da escola dia sim, dia não: um não estava logado no computador, outro estava sonolento. Isto porque ninguém estava em casa para vigiá-los”.

Quando a pandemia surgiu, ela tomou providências para melhorar a velocidade de internet para suportar aulas de vídeo simultâneas. A escola disponibilizou os laptops, mas eram restritos aos deveres escolares. Assim, Ridley precisou atualizar os computadores da casa para os filhos conseguirem fazer mais coisas ficando em casa o dia inteiro. Ela os ensinou como usar com responsabilidade a rede social e não conversar com estranhos online. Os computadores têm sido importantes para mantê-los ocupados e em contato com os amigos.

Ridley e a maioria dos filhos ficaram entusiasmados quando a escola iniciou as aulas presenciais novamente, em meados de fevereiro. Seu filho mais velho, com 17 anos, decidiu continuar com as aulas remotas.

Consequências

Em dezembro, a Academia Americana de Pediatria alertou para problemas de visão porque as pessoas têm ficado tempo demais, e muito próximas, das telas, mas que as pausas e outras precauções ajudariam.

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A entidade já havia alertado para outros efeitos para a saúde decorrentes do excesso de tecnologia, como obesidade. Embora muitas crianças tenham trocado algumas interações sociais por substitutos online, isto não substituiu o tipo de aprendizado emocional e social que teriam pessoalmente.

Emily Dobson não tem se preocupado com as telas. Mas observou uma forte mudança na filha de nove anos depois de ela passar para o ensino remoto. Livre de um programa curricular rotineiro, Luna vem prosperando nos estudos, embora ainda continue com as aulas pelo computador. Ela está mais interessada em acompanhar o que lhe interessa, como conversar pelo Zoom com especialistas em todo o mundo, incluindo um amigo da família no Japão que dá aulas de pintura para ela duas vezes por mês. Ela está até mais saudável, disse Dobson.

Mesmo no melhor dos casos, um ano na vida de uma criança parece impossivelmente longo. Seu cérebro ainda vem se desenvolvendo e ela aprimora habilidades sociais importantes além das disciplinas escolares. Mas a tecnologia vem permitindo que essas crianças encontrem novos recursos criativos para forjarem amizades e criarem grupos sociais. Douglas Downey, professor de sociologia na Universidade de Ohio, estudou como as crianças adquirem uma habilidade social online e está otimista, achando que elas ainda poderão melhorar nesse campo por meio de rede social, dos telefonemas e jogos.

“Há uma outra dimensão das habilidades sociais que vem emergindo e se tornando importante – as digitais – e é possível que esta geração seja melhor nesse campo”, disse ele.

Os pais de Sophia Morabito, de 15 anos, deram a ela muita liberdade para decidir quanto tempo deveria ficar no computador ou no celular. Sofia, que está no primeiro ano da escola secundária no condado de Howard, Maryland, diz preferir as aulas remotas. Ela perdeu o contato com os colegas, mas tem uma vida social vibrante no aplicativo de bate-papo Discord, onde conversa regularmente com os amigos que fez jogando seus videogames favoritos.

“Eles jogam e se divertem, brincam e aliviam tanto o estresse que meu marido defende totalmente qualquer coisa que deixe todo o mundo mentalmente são”, disse a mãe das crianças, Jennifer Morabito.

Educadores e pesquisadores ainda não sabem qual foi o impacto do ano passado sobre as crianças e só saberão quando as escolas abrirem totalmente. Aliás, as escolas já estão preocupadas com os alunos que não participaram de todas as aulas remotas e aqueles que não conseguiram monitorar. E pode ocorrer uma abstenção maior do que a usual quando as instituições voltarem a abrir para aulas presenciais.

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Mas algumas famílias talvez prefiram que os filhos aprendam em casa. Wendy Jackson, de Dallas, no Texas, tentou dar aulas para os filhos pelo Zoom no ano passado. Em maio, a enfermeira e ex-professora, e seu marido, que também é professor, deram aulas para os filhos de 13 e nove anos. E rapidamente perceberam que isto preenchia bastante tempo do dia deles e melhorou seu humor e desempenho. Eles tinham mais tempo para jogar seus videogames e assistir à TV, mas ela não ficou preocupada e diz que eles no final ficaram entediados com seus computadores e trocaram por alguma atividade artística, tocar piano ou guitarra.

“Prefiro mais ensinar meus filhos de que maneira utilizar a tecnologia em seu benefício em vez de limitar o seu uso. E isso não vai desaparecer”. / Tradução de Terezinha Martino

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