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Covid-19: desigualdade social determina quem sobrevive ao coronavírus no Rio

De acordo com levantamento, curva de óbitos de pacientes sem UTI cresce justamente nas semanas em que o Rio teve mais filas por vaga de internação para tratar a Covid-19
Aidano Jacinto de Melo passou três dias deitado sobre cadeiras no Hospital municipal Evandro Freire em abril de 2020 Foto: Reprodução
Aidano Jacinto de Melo passou três dias deitado sobre cadeiras no Hospital municipal Evandro Freire em abril de 2020 Foto: Reprodução

RIO — Morador de Bangu, João da Silva tem 69 anos, é pardo e estudou até o ensino médio. O idoso sofria de doença cardiovascular e diabetes. Dias depois de ter febre, tosse e dificuldades para respirar e de um exame de imagem constatar que estava com Covid-19, ele morre. Esse é um personagem fictício construído a partir das principais características de idade e de evolução da doença de 4.602 pessoas infectadas, desde o início da pandemia no Rio, que morreram sem sequer passar por uma UTI.

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O levantamento feito com base nos dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (Sivep-Gripe) do estado — que reúne informações sobre os casos mais graves de coronavírus — mostra que esses pacientes, muitos deles idosos, tiveram seu tratamento impactado pela desigualdade social. Enquanto em boa parte de bairros da Zona Sul, menos de 20% das mortes aconteceram sem que o infectado tenha dado entrada em uma unidade de terapia intensiva, na Vila Kennedy, por exemplo, o percentual chegou a 60%.

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Essas 4.602 pessoas representam 24,6% de todas as mortes na cidade, que chegaram nesta quarta-feira, dia 24, a 18.638. Pela lista, é possível saber que os 20 bairros com menos ingresso de pacientes graves em UTIs — proporcionalmente ao total de óbitos — ficam nas zonas Norte e Oeste. Entre eles, Bangu, Campo Grande, Realengo, Santa Cruz, Vila Kennedy, Senador Camará, Parada de Lucas e Costa Barros. Ao mesmo tempo, concentram-se na Zona Sul da cidade os bairros em que os moradores tiveram mais acesso a tratamento intensivo: Cosme Velho, Glória, São Conrado, Lagoa, Humaitá e Ipanema. Copacabana, por exemplo, que tem uma alta taxa de mortalidade e a maior população de idosos do Rio, está na 140ª posição num ranking de 150 bairros — aqueles onde houve menos de dez mortes no período foram retirados da análise para evitar distorções. Lá, em Copacabana, o percentual de pessoas que morreram sem passar por UTIs cai para 14%.

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Pelas estatísticas, a maior parte dos mortos deu entrada na emergência de um grande hospital público. No auge dos casos, era preciso sorte para conseguir uma vaga, principalmente de terapia intensiva. Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam que é possível traçar um paralelo entre esses dados e o desigual acesso histórico a serviços públicos na cidade, sobretudo na área da Saúde. A curva de óbitos de pacientes sem UTI cresce justamente nas semanas em que o Rio teve mais filas por vaga de internação para tratar a Covid-19, o que sugere que foram doentes que não tiveram a chance de um tratamento correto por falta de leito.

— Esse é um indicador de desigualdade. A pessoa mais pobre tem mais dificuldade de acesso a uma UTI, seja pública ou privada — analisa Diego Xavier, epidemiologista e coordenador do Monitora Covid-19, da Fiocruz.

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Até o início de janeiro deste ano, cada município era responsável por regular as vagas de internação para Covid-19 em um sistema separado do usado pelo governo estadual. No pico da pandemia, em maio, o estado chegou a discutir uma proposta de “escolha de sofia oficial”, em que seriam priorizados os pacientes com mais chances de sobreviver, e, entre os critérios de desempate, estava a idade. A proposta foi deixada de lado após críticas e hoje a regulação é unificada no sistema estadual, com a possibilidade de o doente ser transferido entre municípios.

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O mesmo banco de dados permite ver que, além do pouco acesso a UTIs, a procura por atendimento é diferente. Enquanto na Zona Sul, predomina a busca por hospitais privados, em locais mais pobres a única alternativa é a rede pública, que chegou a ter filas com mais de mil pacientes à espera de um leito. Em Ipanema, por exemplo, 61% dos pacientes com sintomas mais graves foram internados em unidades privadas, enquanto do outro lado da cidade, em Santa Cruz, 59% foram atendidos em hospitais públicos.

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Despedida triste

A especialista em saúde pública e sanitarista Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que o Rio tinha uma das maiores redes públicas do Brasil e hoje tem uma concentração de leitos na rede privada. Apenas cerca de 30% do total estão no SUS:

— O que está por baixo disso tudo? Uma brutal desigualdade. Sempre falamos que era preciso apoio nessas áreas mais desassistidas.

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As histórias que deixam um sentimento de impotência e tristeza nas famílias, às vezes, sequer entram para as estatísticas. Como a de seu Aidano Jacinto de Melo, de 84 anos, que chegou ao Hospital municipal Evandro Freire, na Ilha, em abril de 2020, com saturação muito baixa, febre e calafrios. Sem vaga, passou três dias deitado sobre três cadeiras, acompanhado pelo filho.

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— Falaram para o meu marido: “Se quiser, vai em casa, pega um cobertor, travesseiro, porque faz muito frio, e espera por um leito”. Meu sogro ficou ali, sem medicamento e sem atendimento — conta a nora, Rosângela Melo, que acredita que seu Aidano depois foi para a sala vermelha, mas não tem certeza. — Ninguém podia mais acompanhá-lo. Ele estava bem e tinha feito alguns exames até pegar Covid e ficar lá, largado. É triste. E o óbito ainda saiu dizendo que era “suspeita de Covid”.

A Secretaria municipal de Saúde informou que o caso aconteceu na gestão passada, mas que vai apurar o que houve.

*Colaborou João Pedro Fragoso