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Cotistas têm nota pior que os outros alunos na faculdade? Pesquisas mostram que não; entenda estudos

Negros e indígenas têm desempenhos inferiores no começo, principalmente em Exatas, mas se recuperam e igualam as notas dos não cotistas

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

As notas dos alunos cotistas, que ingressam no ensino superior em vagas reservadas para negros, pobres e indígenas, são equivalentes às dos demais estudantes. Essa é a conclusão de várias pesquisas em universidades estaduais e federais do País. Esses dados refutam o argumento dos críticos das cotas que defendem que as deficiências da educação básica causam um desnivelamento entre os estudantes, comprometendo a excelência do ensino superior.

O artigo Ação afirmativa baseada na raça e no rendimento nas admissões ao ensino superior: lições da experiência brasileira analisou 53 pesquisas sobre o desempenho dos alunos cotistas no Brasil na última década. O objeto de estudo foi o sistema de cotas raciais, que reserva vagas nas universidades para estudantes negros e indígenas.

Estudantes do coletivo Poli Negra ajudam cotistas com dificuldade acadêmica na Escola Politécnica da USP. Da esquerda para direita: Leonardo Bispo, Rafael Almeida Rabelo, Letizia Azevedo Bezerra, Thiago Neris da Silva, Diogo Monteiro do Amaral, Juliana Aparecida dos Santos, Victor de Assis Gonçalves Santos e João Pedro Santana. Foto: Taba Benedicto/Estadão

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As conclusões da pesquisa, publicada em maio no Journal Economic Surveys, permitem traçar um caminho dos cotistas. Nos testes de entrada, eles apresentam notas menores que os não cotistas, principalmente nas áreas de Exatas e Tecnológicas. As diferenças são reduzidas ao longo da universidade. “A diferença de desempenho entre os dois grupos não desaparece totalmente, mas as notas convergem no final do curso”, diz o professor Rodrigo Zeidan, da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral.

Zeidan é autor do estudo ao lado dos pesquisadores Silvio Almeida, hoje ministro dos Direitos Humanos, Inácio Bó, da Universidade de Macau, e Neil Lewis, Jr., da Cornell University. O resultado do estudo surpreendeu o especialista. “Os dados surpreendem porque configuram um consenso científico, com baixo nível de discordância entre os estudos analisados. Pouquíssimos estudos identificaram um desempenho acadêmico ruim dos alunos cotistas.”

Outros estudos chegaram à mesma conclusão. No início do programa de cotas da USP, no 1º semestre de 2018, a distância máxima entre os oriundos de escolas públicas e os de particulares foi de 1,2 ponto na mediana das notas, aquele ponto central de cada grupo (50% dos alunos estão acima dessa marca e os outros 50%, abaixo). Já no 2º semestre de 2019, ou seja, no último boletim pré-pandemia, a distância havia sido reduzida para 0,9 na média.

Nos cursos mais concorridos, a distância de notas entre cada grupo é um pouco maior do que nos menos concorridos, mas, em ambos, diminui ao longo do curso, de acordo com o estudo Ações Afirmativas no Ensino Superior Brasileiro, do Centro de Estudos da Metrópole, ligado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Ao longo de quatro anos, a pesquisa avaliou cerca de 11 mil estudantes da primeira turma desde a implementação da política de cotas para estudantes de escolas públicas e para pretos, pardos e indígenas. “Embora a USP não seja representativa do resto do Brasil em virtude de um sistema universitário muito heterogêneo, este estudo mostra que as ações afirmativas não comprometem a excelência acadêmica”, afirma a coordenadora da pesquisa e professora da FFLCH, Marta Arretche.

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Na Bahia, estudo comprova bom desempenho em Exatas

Conclusões semelhantes foram observadas pelo professor e doutorando Caio Vinicius Silva na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Estado em que a população é predominantemente negra e única do País a apresentar maior número de autodeclarados pretos do que brancos – 22,5% e 18,7%, nesta ordem de acordo com IBGE. No estudo Políticas de cotas na UFBA uma investigação sobre o desempenho acadêmico de estudantes cotistas e não-cotistas (2005-2019), o especialista afirma que o comprometimento da excelência acadêmica pelos cotistas não passou de uma suposição.

Para chegar a essa constatação, Silva se debruçou sobre a área de Ciências Físicas, Matemática e Tecnologia, aquela com maior diferença de desempenho entre cotistas e não cotistas no início do curso. Entre o primeiro semestre de 2014 e o segundo semestre de 2019, os não cotistas possuem cerca de 59 pontos a mais do que os cotistas – o vestibular que servia como principal acesso aos cursos universitários foi substituído pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

No mesmo período, as notas finais, calculadas por meio do Coeficiente de Rendimento (CR) dos graduados, mostram que a diferença era apenas de 0,1 ponto a favor do não cotistas (7,5 a 7,4). No período, foram matriculados 6.821 estudantes nessa área. Destes, 3.034 (44,5%) são cotistas e 3.787 (55,5%) são não cotistas. “Cotistas e não cotistas da Área I da UFBA, ao concluírem seus cursos, evidenciam que as diferenças iniciais de desempenho são superadas no decorrer da graduação”, afirma o especialista.

Jônatas Magalhães dos Santos, aluno cotista do curso de Medicina da USP Foto: Taba Benedicto/Estadão

Essas pesquisas colocam em xeque o discurso recorrente, utilizado por grupos contrários às cotas, que previa uma possível queda da qualidade do ensino superior com a entrada de cotistas. A base dessa argumentação é a diferença flagrante da qualidade de ensino da educação básica na rede pública e na privada.

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Ela está presente na Fuvest, o maior vestibular do País. Em 2018, a melhor mediana foi a de brancos/escola privada (560,4), seguida de PPI/privada (537). As mais baixas são de escolas públicas, sendo 464 a de brancos e 424,9 a de PPI. “As pessoas reproduziam essa frase, como uma verdade, mas não existiam pesquisas sobre isso”, diz Arretche.

O estudante de Medicina Jônatas Magalhães Santos, de 22 anos, percebeu essa desconfiança em vários momentos. O primeiro deles foi quando esse baiano de Salvador se classificou em primeiro lugar no curso de Medicina da USP na categoria escola pública (EP) em 2020. Na classificação geral (Ampla Concorrência), ele seria o terceiro colocado. Nas reportagens sobre sua façanha, ele leu comentários que diziam “a nota não vale porque é de cotas” e questionamentos preconceituosos, como “tem certeza de que você não é descendente de japoneses?”.

As razões que levam os cotistas a evoluir na graduação merecem mais pesquisas, mas os estudiosos são unânimes ao afirmar que os cotistas são alunos de destaque em seus grupos de origem. “Quando têm acesso a uma estrutura melhor, os cotistas conseguem desenvolver e produzir conhecimento para reduzir ou superar as diferenças iniciais de desempenho”, diz Silva.

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Cotas buscam corrigir desigualdades históricas com grupos discriminados

As cotas raciais e sociais são ações afirmativas que buscam corrigir desigualdades históricas para grupos discriminados como mulheres, negros, indígenas e pessoas de baixa renda. As ações já eram adotadas no ensino superior público, mas a norma federal de 2012 impulsionou o movimento. Na prática, elas reservam vagas para esses grupos historicamente subrepresentados nos processos seletivos.

Pela legislação atual, 50% das vagas de cada curso, em cada turno, deve ser reservada para as alunos de escola pública. Dentro das vagas reservadas, uma parte das cadeiras deve ser destinada para estudantes de escola pública que sejam pretos, pardos e indígenas (PPI) na mesma proporção desses grupos entre os habitantes do Estado onde está a instituição, conforme os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Isso significa, por exemplo, que a proporção de vagas para alunos de escola pública é a mesma em todas as universidades federais do Brasil (metade). Já a proporção de pretos, pardos e indígenas será maior, por exemplo, na Bahia do que em Santa Catarina. Para além da promoção da diversidade social e racial nas universidades, a política mudou a perspectiva de uma enorme parcela de jovens, que passaram a ver nas universidades uma possibilidade de futuro.

Coletivos ajudam a superar problemas da educação básica

A entrada na Universidade de Campinas (Unicamp) foi mais difícil do que a cotista Erica Coelho Almeida tinha imaginado. No primeiro semestre do curso de Engenharia de Alimentos, a estudante de 23 anos teve quatro reprovações e um trancamento em um total de seis disciplinas. Ela entendia pouco do que o professor dizia por causa dos problemas do ensino básico – foram dois meses sem professor de Matemática no 6º ano em Itupeva, interior de São Paulo.

Fatores extraclasse também puxavam as suas notas para baixo. Quatro horas no transporte público para chegar à faculdade enquanto os colegas já tinham carro. Na sala de aula, a baiana de Jequié que estudou a vida toda em escolas públicas no interior de São Paulo via os colegas com tablets, notebooks e iphones, algo distante de sua realidade. Por tudo isso, ela se sentia deslocada.

A estudante Erica Almeida superou as dificuldades do início do curso de Engenharia de Alimentos na Unicamp Foto: Arquivo Pessoal

Aos poucos, ela entendeu que sua presença ali era resistência. Passou a estudar duas a horas a mais e fez amizades com outros cotistas. Suas notas melhoraram a partir do 3º ano. Hoje, ela consegue acompanhar as notas da turma. Ficou atrasada por causa das reprovações, mas pretende se formar no ano que vem. Está feliz por não ter desistido do curso.

A trajetória de Erica exemplifica como o ingresso dos cotistas está relacionado às lacunas educacionais que trazem da educação básica pública. Existem algumas dicas para que o caminho não seja tão acidentado. A estudante conta que o primeiro passo é criar o hábito de tentar estudar e aprender novas coisas sozinho. “Você vai precisar ser autodidata para sobreviver a universidade”, diz.

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Mas você não precisa estar sempre sozinho. Os estudantes ouvidos pelo Estadão afirmam que é fundamental procurar grupos para se inserir. Não só grupos de estudo. É importante construir uma rede de apoio, fazer amigos com quem você se identifique para que vocês possam se ajudar mutuamente.

Letízia Bezerra, de 21 anos, conta que procurou veteranos do curso que ela havia escolhido, Engenharia Química, nas redes sociais para saber coisas além do conteúdo. “A entrada na faculdade é, na maior parte das vezes, individual. Mas, na faculdade, isso é quase impossível”, diz Thiago Neres da Silva, de 23 anos, aluno da Engenharia Elétrica.

Filho de um pedreiro e uma copeira na favela de Heliópolis, em São Paulo, Thiago foi reprovado em mais da metade das matérias do primeiro semestre, como Cálculo e Física. “Minhas notas foram desastrosas no primeiro ano”, reconhece. Seu desempenho melhorou. No semestre passado, foi aprovado em todas as sete, incluindo “pedreiras”, como circuitos e física 3.

A faculdade em que Letízia e Thiago estudam, a Escola Politécnica da USP, tem um bom exemplo de cooperação. O coletivo Poli Negra, criado para acolher os novos alunos, principalmente os pretos e pardos, criou o curso Pré-Engenharia, aulas de reforço para sente que não está conseguindo acompanhar as aulas.

Foi, na verdade, um mutirão. A Poli facilitou o contato com os alunos enquanto alguns professores indicaram os temas de maior dificuldade. Victor Santos, aluno do 5º ano de Engenharia Elétrica, conta que a iniciativa nasceu a partir das dificuldades dos próprios veteranos como ele, em 2019. “Os professores entendiam que os alunos já tinham estudado cálculo, álgebra, física e até introdução à computação, mas muitos não têm nem computador em casa”, diz o estudante de 25 anos.

A nota é um retrato do que o aluno mostra na sala de aula, mas diretamente influenciada por aquilo que acontece fora dela. O contexto de vulnerabilidade socioeconômica também precisa entrar na equação. “Eu me mudei para São Paulo e não conhecia ninguém. Tinha a insegurança financeira, a distância da família numa faculdade em que as muitas pessoas já se conheciam. Isso gera estresse e traz sofrimento. Depois de tudo ajustado, fica obviamente mais fácil estudar”, diz Jônatas.

Essa lição de casa também tem de ser feita pela própria universidade na opinião de Vanessa Martins, de 25 anos, que entrou em 2017 em Química na USP. “Alguns cursos não estão preparados para receber os cotistas. Professores não estão acostumados com esse perfil”, diz.

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O que dizem as faculdades e universidades

Aluísio Segurado, pró-reitor de Graduação da USP, afirma que o órgão possui análises em andamento sobre a relação entre a adoção do regime de cotas e o desempenho acadêmico dos estudantes.

Segurado informa ainda que a PRG instituiu no ano passado o Programa de Apoio Pedagógico (PAP), que visa apoiar os estudantes ingressantes com acompanhamento pedagógico monitorado por alunos bolsistas de graduação e de pós-graduação. “O programa não foi especificamente voltado para alunos cotistas, mas sim a ingressantes de uma forma geral, considerando-se as possíveis perdas pedagógicas havidas durante o ensino remoto emergencial decorrente da pandemia de Covid-19″, diz o professor.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (Proae), órgão da administração central responsável pela consolidação de ações afirmativas e pela gestão dos programas de permanência estudantil na graduação, informa que não existe um estudo comparativo de desempenho feito pela instituição.

A UFBA informa que “oferece, anualmente, cerca de 600 bolsas de iniciação, além de auxílios transporte, alimentação, moradia, saúde e inclusão digital. Com uma equipe multiprofissional de técnicos-administrativos em educação e docentes, a Proae gerencia serviços, como restaurante universitário, residências, creche e transporte intercampi. A Pró-reitoria também oferece atendimentos na área psicossocial e de educação em saúde”. A UFB não informou se possui programas de reforço acadêmico para os alunos cotistas.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com os coletivos PoliNegra, grupo de estudantes negros da Escola Politécnica da USP, e Unicamp Black, que reúne universitários pretos e pretas da Unicamp

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