Flávia Oliveira
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Flávia Oliveira

Jornalista

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Flávia Oliveira

‘Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país.’ A frase de John Kennedy (1917-1963) aos americanos no discurso de posse, em janeiro de 1961, tornou-se mundialmente famosa, nunca esquecida. Neste domingo, 28 de agosto, a lei federal de cotas completa uma década. O raciocínio plantado pelo então presidente dos EUA se aplica integralmente. Não é o caso de só perguntar o que a Lei 12.711 fez por alunos de escolas públicas, pobres, negros, indígenas, mas de saber o que esses brasileiros fizeram pela educação no país. Entregaram muito, porque nenhuma política pública é via de mão única.

Quando o governo uniformizou na legislação as regras de acesso por cotas nas universidades federais, oito em cada dez instituições públicas de ensino já adotavam algum modelo de ação afirmativa. A pioneira foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Em 2000, a Assembleia Legislativa do Rio aprovou a reserva de metade das vagas para estudantes de escolas públicas, e no ano seguinte a destinação de 40% para autodeclarados pretos e pardos. Em 2018, o Rio renovou por dez anos a lei de cotas em universidades públicas fluminenses.

A lei federal, de 2012, previa revisão do sistema de acesso por cotas em dez anos. Mas suas determinações não expiram ao fim do prazo. Portanto é errado afirmar que as regras deixam de valer agora ou que a lei necessita de prorrogação. “A expressão correta deveria ser avaliação. Não é o caso nem de revisão nem de prorrogação”, ratifica a professora Márcia Lima, do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Ela coordena com o professor Luiz Augusto Campos, do Gemaa/Uerj, o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022, uma das iniciativas que investigam os avanços da implementação da Lei de Cotas.

Os estudos têm confirmado resultados positivos acima do esperado, tanto em desempenho quanto em evasão dos cotistas. Notas e abandono têm níveis semelhantes para cotistas e alunos admitidos por ampla concorrência. Na pesquisa “Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros”, coordenada pelas professoras Rosana Heringer, do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ, e Denise Carreira, da Ação Educativa, o total de cotistas mais que dobrou sob o critério escola pública (+115%) ou nos que combinam escola pública/baixa renda (+105%), escola pública/raça (+147%). Na interseção ensino público/baixa renda/raça, o acesso triplicou (+205%); na entrada por ampla concorrência, caiu 14% com a vigência da legislação.

Os resultados são tão diferentes, porque a lei impõe cotas distintas. Há o mínimo de 50% de vagas para quem cursou o ensino médio em escolas públicas; metade delas vai para estudantes com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio. Pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (estas desde 2016) beneficiam-se de uma subcota equivalente à participação de cada grupo na população dos estados. Sim, a reserva de vagas segue critérios sociais, antes dos raciais. Embora tenha sido historicamente defendida como política de reparação de desigualdades por organizações do movimento negro, alcança todos os excluídos. É o avesso do “identitarismo” apontado por alguns críticos.

O estudo Lepes-UFRJ/Ação Educativa afirma que as políticas de ação afirmativa e de democratização do acesso ao ensino superior brasileiro são iniciativas bem-sucedidas, embora necessitem “investimento mais robusto em políticas de permanência”. Márcia Lima sugere para o aperfeiçoamento da Lei de Cotas mais transparência nos dados, revisão do perfil socioeconômico dos beneficiários — a renda de 1,5 mínimo per capita engloba a maioria esmagadora das famílias brasileiras, não necessariamente as mais pobres — e medidas que ampliem o acesso aos cursos de alta seletividade, caso das áreas médica e tecnológica.

Desde a virada do século, o debate sobre ações afirmativas estimulou a ampliação da oferta de vagas no ensino superior. Houve criação de novas universidades e institutos federais, de campi e cursos, além de programas como Sisu, ProUni e Fies, que permitiram acesso a unidades públicas e privadas. Em 2019, o Inep contava 8,6 milhões de matrículas no ensino superior, mais de um quinto do total de jovens de 18 a 24 anos. Não se trata somente de pobres e negros, mas de mais brasileiros na universidade. Ninguém perdeu.

As unidades de ensino ganharam muito. A composição das salas de aulas mudou. Ampliou-se a diversidade dos professores. Novos territórios, gentes e saberes foram incorporados às pesquisas acadêmicas. Variáveis de raça, gênero, desigualdades sociais foram incluídas nas áreas do Direito à economia, da ciência política à administração. Intelectuais pretos, indígenas, mulheres saíram da invisibilidade. “Não é possível pensar em benefícios só para os negros. Todo mundo ganhou”, resume a professora Márcia. Se a Lei 12.711 fez pelos pretos e pobres, estes fizeram ainda mais pelo Brasil — desde sempre, e também na década das cotas.