Conhecer de onde vem para saber para onde vai é o lema ao qual os movimentos sociais negros e indígenas aderiram para tentar romper com o racismo estrutural. Em um país desigual — em que pessoas pretas e pardas, mesmo sendo 56% da população, ainda enfrentam dificuldades no acesso à educação —, o pontapé da mudança, segundo estudiosos, é empoderar crianças, jovens e adultos a partir das culturas e saberes ancestrais, que passam longe da exploração e da escravatura.
— Ancestralidade é igual a uma teia de aranha, juntando os caminhos dos saberes de algo que não começa só em mim, mas que significa pertencer. O Brasil precisa construir sua teia. Precisamos de uma pedagogia do pertencimento, pensar no Brasil grande, uma teia da qual faço parte, seja do povo indígena, africano ou europeu. Somos um povo que precisa construir sua ancestralidade e a autoestima das nossas crianças, e não negar aquilo que somos — defende o professor e escritor Daniel Munduruku, no Festival LED.
A ancestralidade pode ser entendida de diferentes formas, a depender da tradição de cada povo. Entre os africanos, por exemplo, Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor”, aponta que o legado encontra-se nas famílias adotivas, formadas por parentes e amigos. A conexão ancestral está ainda na escuta dos saberes e no respeito aos idosos, assim como na cultura indígena.
Escola é semente
Um caminho possível para a construção desse pertencimento é a educação. Ana Maria diz que o debate sobre resgate ancestral é recente, visto que até mesmo a palavra “racismo” só foi incluída no dicionário brasileiro em 1982. Segundo a escritora, é de extrema importância que diferentes pessoas tenham acesso a ensino de qualidade para que o “heroísmo” europeu colonizador, ensinado nos livros didáticos, seja ressignificado.
— A representatividade pode ser uma grande armadilha. Acabam sendo os mesmos rostos, e somos diversos. A gente não vê nenhum branco representar todos os brancos, então não podemos representar todos os pretos. Meu papel é abrir espaços para que mais pessoas possam falar por si. Minha ancestralidade aponta para o futuro — afirma.
Um dos lugares onde a diversidade mais aflora e pode ser compartilhada é o ambiente escolar, com participação ativa dos professores e famílias. Por isso, a Lei nº 10.639, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas, é tão importante, de acordo com o ator Lázaro Ramos. Criada a partir da mobilização do movimento negro, a legislação completou 20 anos em janeiro e representa uma tentativa de resgatar e incluir no currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História, a contribuição do povo negro brasileiro nas áreas social, econômica e política durante a história do país.
— O papel da escola e dos educadores é fundamental na construção da ancestralidade. É preciso conhecer a história do nosso país e, para isso, não tem como a gente não falar da valorização do professor. A ancestralidade se constrói também nas pessoas que constroem esse saber — destacou o ator durante a mesa “Como o passado pode guiar futuros?”.
Apesar de o acesso ao ensino superior não sanar todas as desigualdades, ele é uma grande porta de acesso, por exemplo, a profissões nas quais negros e indígenas são sub-representados. De acordo com a filósofa Katiuscia Ribeiro, a Lei de Cotas, que tenta equiparar este cenário, é uma reparação para com negros e indígenas que tiveram os seus direitos violados com a escravidão.
— Falar sobre cotas é falar sobre um processo de reconstrução. O Estado brasileiro construiu sua riqueza a partir de mão de obra de pessoas pretas. Todos os países que sofreram com os impactos da violência escravocrata implementaram o sistema de cotas — pontua a filósofa. — A entrada das pessoas negras na universidade permite que nós tenhamos juízes, médicos, filósofos, engenheiros com o olhar da problemática do movimento negro e da população indígena. Cota não é caridade. É um direito político e social para a reconstrução da participação da população — diz.
Durante o Festival LED, o professor João Luiz Pedrosa contou sua trajetória como um homem negro universitário. Apesar de hoje mais da metade dos graduandos serem pretos ou pardos, de acordo com o IBGE, as políticas de permanência ainda são escassas e precisam de manutenção. No caso dele, só foi possível concluir o curso de Geografia graças às bolsas estudantis.
— A gente fala de acesso, mas precisa falar também de permanência. Enxergo a política de cotas e outras políticas afirmativas como privilégios reorganizados. Escutamos que as cotas pegam vagas de outras pessoas. Isso significa que essa vaga tem um dono? Não é uma utopia pensar numa sociedade que respeita nossas diferenças — diz.