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Gestão

Convivência escolar: como combater bullying e outras violências

Luciene Tognetta pesquisa há mais de 20 anos sobre violência escolar e destaca: escola é lugar de aprender a conviver

Publicado em 09/05/2024

por Laura Rachid

Convivência escolar sob o campo da psicologia e educação moral ligada, por exemplo, a valores de justiça, democracia e solidariedade, sem relação com educação moral e cívica , faz parte das pesquisas de Luciene Regina Paulino Tognetta pelo menos 20 anos. Autora de livros que levam nos títulos palavras como bullying, violência escolar, convivência democrática e afetividade escolar, Luciene é professora na Unesp e coordenadora do Convivência na escola: virtudes, bullying e violência, do respeitado Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), criado em 2005 e vinculado à Unesp e Unicamp, mas com pesquisadores de diferentes universidades públicas e particulares. 

Luciene Tognetta ensina que a convivência precisa ser pensada por meio de três aspectos: institucional, relacional e curricular e comemora que o Gepem tem conseguido influenciar outras pesquisas e até políticas públicas. Graduada em pedagogia e com pós-doutorado em psicologia, também é coordenadora da rede Equipes de Ajuda do Brasil (www.somoscontraobullying.com.br/), que tem levado às escolas programas de convivência cuja base é a atuação entre pares, nesse caso, colocando os estudantes como uma ponte que detecta o sofrimento do colega. Confira a entrevista e se informe também sobre as cinco características do bullying. 

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Qual o foco atual do Gepem?  

Hoje tentamos mostrar com as nossas pesquisas que o bullying é um problema sério e diante da falta de políticas públicas assertivas para conduzir essas questões de convivência — que não são vistas aos olhos das autoridades — como é que podemos, de fato, pensar sobre a perspectiva de prevenção dos problemas. Por exemplo, a intervenção das câmeras [dentro das escolas], com todo o aparato de segurança que foi pensado diante dos ataques às escolas ano passado, pode minimizar os problemas, mas não resolver algo que é tão sério. Essas questões têm sido cada vez mais presentes na educação e é por isso que a gente tem focado em políticas públicas que possam pensar esses ataques e desmistificar a violência nas escolas.  

Quando fala em desmistificar, está querendo dizer que a escola não é a culpada? Quais as causas dessa violência e por que a escola é o alvo? 

Temos que desmistificar a ideia de que todas as formas de problemas de convivência que acontecem na escola são violências e que acometem a escola ou que vêm de fora da sociedade ou dos alunos. É uma necessidade pensar em maneiras de intervenção escolar quando há uma ideia geral de crer que só temos na escola violências que vêm dos alunos e extremas, como no caso dos ataques, ou violências que são agressões físicas dos alunos. Temos uma maneira de pensar: se é violência, se é agressão, é crime e, portanto, chama a polícia. Essa lógica nos leva a uma intervenção pouco eficaz para o cenário de problemas que a escola tem. Neste sentido que é desmistificar.  

Mas, por que a escola? A escola é o universo de convivência. É o lugar de maior convivência entre aqueles que estão em processo de formação. Nessa perspectiva, em um ataque não se escolhe um shopping, cinema ou supermercado, que têm mais pessoas, porque a escola representa simbolicamente um espaço de cuidado e de formação. Ela é o lugar de onde saem esses agressores em potencial porque de alguma forma eles vivenciaram essas agressões pelas quais, inclusive, foram fundantes para que ele se tornasse também um agressor na escola. 

Então a escola não é a vilã. Ela é um lugar em que se convive e se experimenta as primeiras formas de convivência pública com aqueles que pensam diferente, sentem diferente, que vivem e que têm valores diferentes daqueles que primeiro viveram com sua família. No ambiente com valores particulares, se eu bater ou brigar com alguém essa pessoa não deixa de ser minha mãe, meu pai ou irmão. Portanto, é na escola que acontecem as primeiras relações de convivência e por isso é o espaço de aprendizagem maior dessas relações interpessoais que vão acontecer. 

Bullying e racismo são crimes. Qual a diferença entre eles e de que forma a escola deve lidar?  

A lei antibullying [de 2015] é boa, mas podemos falar depois dela. Essa última Lei 14.811/2024, que torna o bullying crime, fala de maneira mais ambiciosa e mais generalista do fenômeno, o que não é ruim. Ela chama de bullying um espectro maior do que de fato ele significa em termos psicológicos. É boa em função de pegar a nomenclatura que tem sido usada para violências escondidas na escola e, inclusive, boa para chamar a atenção desse problema. Mas, nem tudo que acontece em termos de violência na escola, por exemplo, as violências extremas que levaram à promulgação dessa lei — porque incitaram e pediram uma resposta em termos de políticas educacionais — são necessariamente formas de bullying ou são a causa dos problemas. Ainda que a causa mais evidenciável seja o bullying, na maior parte dos relatos desses agressores que viveram situações de bullying na escola, o bullying não é o único fenômeno, o único problema. E essa lei vem para dar uma resposta a um espectro muito maior de violência do que apenas o bullying, principalmente violências ligadas às redes sociais, à convivência digital tão pouco regulamentada no nosso país.  

A segunda questão explica essa mistura que muitas vezes temos de bullying e racismo. Temos uma mistura dessas violências dentro desse grande espectro e que fazem com que essa mistura se manifeste em formas de racismo muito mais presentes nesse cotidiano. Por isso temos a ideia de que é bullying, é racismo. O racismo é muito maior do que o bullying, situações de racismo são situações que não envolvem apenas aqueles que estão dentro da dinâmica do bullying. O racismo envolve um povo historicamente constituído e que historicamente viveu a exclusão, a diminuição, o menosprezo. 

Uma das formas mais evidenciadas, principalmente no momento em que nos perdemos, nos esquecemos como civilização, marcos civilizatórios essenciais que já construímos e que já evidenciamos — as explicações são inúmeras, inclusive a do momento histórico que passamos nos últimos anos, não só no Brasil, mas que estamos vivendo, do ressurgimento de um extremismo tanto na política quanto em outras questões sociais, reacionárias, fascistas e contrárias aos direitos humanos que já tínhamos conquistado.

Uma conduta racista é maior do que o bullying porque necessita de uma intervenção maior do que com os envolvidos numa situação de bullying. Pode haver um bullying racista, ter uma situação de bullying que também seja racista. Mas nem todo bullying é racismo e nem todo racismo é bullying. O bullying tem cinco características principais e saber disso faz com que a gente entenda a natureza dos fenômenos e a forma pela qual as instituições que educam precisam intervir. Porque numa situação de racismo é muito maior a intervenção do que apenas aos envolvidos nessa situação.  

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Quando buscamos a convivência democrática, atitudes punitivas e proibicionistas talvez não sejam a solução. 

Veja o caso da filha da atriz Samara Felippo, em que se tornou evidente um crime que é o racismo [duas meninas rasgaram o caderno da adolescente e escreveram frase racista]. Por ser na escola, um crime precisa ser pensado de maneira muito particular, porque apesar de ser crime estou falando de crianças e adolescentes e não posso considerar como crime algo que é da natureza da formação da escola. Então a escola precisa olhar para esses sujeitos que estão envolvidos como aqueles que precisam aprender a reparar, aprender a conviver. E nesse sentido, a experiência de uma situação de racismo leva, portanto, à mudança institucional da escola, suas relações, o currículo escolar, e a forma pela qual a escola pensa a organização da sua convivência.

Por exemplo, pensar quantos professores negros a instituição tem, como é a contratação desses professores que não levam em conta cotas raciais para que se tenha esse movimento de ter voz a aqueles que estão inseridos nesse cotidiano. Quando se trata de escolas particulares, além de educadores, é preciso também olhar para os alunos, pensar na necessidade da convivência desde cedo, do que conviver com 99% de brancos e 1% de negros e como esses negros, portanto, têm lugar de fala.  

Luciene

Público que assiste ao bullying são alunos, portanto, não são fenômenos visíveis
aos olhos dos educadores, destaca a pós-doutora Luciene” (Foto: arquivo pessoal)

Quais são as cinco características do bullying? 

A primeira: não há bullying numa situação esporádica, em apenas uma provocação. Normalmente, quando o menino diz — professora, fulano está fazendo bullying comigo —, preciso entender se esse bullying tem a primeira característica que é a repetição. Hoje chamo a atenção do seu cabelo, amanhã conto uma mentira sobre você e no outro dia eu o coloco num grupo e depois o excluo do WhatsApp. São situações repetidas. Só que, de repente, uma situação de racismo também pode ser repetida. 

Segunda característica: precisa ter uma intenção com o objetivo de diminuir o outro, como ferir ao excluir a pessoa do grupo, rabiscar o caderno, menosprezar o cabelo e fazer insinuação sobre o tom da pele. Terceira: preciso de um alvo frágil, alguém que não se defenda ou não encontre meios para se defender. E até alguém que de alguma maneira inconsciente receba essas agressões como — eu mereço isso; eu não sei o que fazer com isso. Não ter embate é uma característica do bullying, não sendo um conflito com medição de forças. Você me bate e eu te bato de volta. Você me xinga e eu te xingo. Quem recebe o bullying não tem forças para se defender. 

Quarta característica: é entre pares, o que significa entre quem tem o mesmo peso institucional. Quinta: tem público para assistir, ou seja, isso me faz rebaixar a minha condição de quem eu sou diante deste público e essas duas características me mostram especialmente algo que é muito cruel para as escolas, inclusive, daquele garotinho que foi morto* em Praia Grande, SP, que é a ignorância de instituições que educam. Por exemplo, o órgão da Secretaria do Estado de São Paulo, o Conviva, que diz que é preciso olhar para as câmeras e ver se realmente aquilo aconteceu. Os professores dizem que nada acontecia. Foi preciso escutar os gestores. Só que não é o gestor que sabe que tem bullying, não é o professor que sabe que tem bullying, porque essas duas características mostram o seguinte: público que assiste são alunos, pares são alunos e, portanto, não são fenômenos visíveis aos olhos dos educadores 

*Jovem de 13 anos morreu duas semanas após ser agredido por estudantes na escola. Pai alega ter comunicado outras vezes sobre bullying sofrido pelo filho e a instituição nada ter feito 

Em seu livro É possível superar a violência na escola?, (ed. do Brasil, 2012), diz que é necessário repensar a tarefa daqueles que educam. Por que e o que indica?  

Primeiro, essas intervenções, o que fazer em situação de bullying, o que fazer em situação de racismo, são peculiaridades que a ciência, e a gente pode dizer isso até em resposta a muitos professores que falarão — mas é muita coisa para a escola, é muita coisa para saber, não vou dar conta de tanta coisa. Acontece que o avanço da ciência vai provocando e explicando especificidades dos fenômenos e, assim, vamos compreendendo melhor as coisas. Um médico não opera mais do mesmo jeito que operava um coração há 30 anos. Eu tenho que me especializar o tempo todo e isso vale para todas as áreas, mas na escola existe uma cultura de que ‘formou na graduação, está pronto’. Não dá para ser assim, inclusive porque até hoje o currículo da graduação não tem disciplinas que trabalham com essas questões de convivência. Até na minha faculdade não tem. Porque para mudar são necessárias 550 burocracias que deem conta e professores universitários que também estejam sensibilizados com esse tema, e não estão, porque estão longe do chão da escola, são teóricos na maioria das vezes. E mesmo se o currículo abarcasse isso, só a graduação não daria conta porque as coisas vêm mudando rapidamente. Por exemplo, hoje sabemos que uma mediação com aluno negro necessita ser feita com um professor negro, uma vez que um professor branco historicamente não viveu o que esse aluno está vivendo. Mas a qualificação não é uma palestra, é cotidianamente pensar no acompanhamento, numa discussão de critérios e formas qualificadas de pensar a convivência.  

Então o professor vai ter que fazer isso nos seus ATPC [Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo], nos seus horários de atividade. Só que isso é mudar uma cultura da escola, porque o ATPC numa escola pública não é no mesmo momento que o do outro colega. Um faz no almoço e o outro às 17h, porque fazem no momento que sobra. Isso é uma questão institucional, é mudar uma cultura. Política pública é garantir a estrutura de funcionamento dessa nova formatação, desse desenho, por exemplo, para formar professores. Então precisarei garantir que as professoras estejam no mesmo horário de ATPC para que possam discutir sobre o bullying. Se não existir essa garantia não será possível assegurar que os professores pensem sobre o problema e não será possível formá-los sobre o tema. Sem estudar e sem entender a situação, não conseguirão resolver esses problemas tão complexos. Quando falamos de formação docente temos que incluir professores, mas gestores e outros funcionários também. 

Também precisamos mudar a concepção de que pela autoridade, pela bronca, se muda alguma coisa. Presenciei o caso de uma professora chamando a inspetora para dar bronca em sua sala, tirando a autoridade dela e colocando em outro pessoa. Outro ponto é o próprio nome, inspetora, que não acolhe, mas inspeciona. Então essa funcionária age do jeito que aprendeu na vida dela e em sua crença de como se educa — dando bronca, ouvindo uma autoridade pela obediência. Essa inspetora também precisa de formação e descobrir que não damos mais bronca porque já sabemos as consequências da obediência, da autoridade. Então se tenho duas pessoas brigando, é com eles que eu falo e ainda organizo as regras de uma assembleia na escola, para que esses estudantes tenham espaços para falar sobre o que não está legal. Inclusive, o professor também deve se pronunciar quando algo não está bom na aula. Nesse livro mostro que são vários aspectos para evitar violência nas escolas e assim melhorar, de fato, a convivência e superar situações como o bullying e outras formas de violência. 

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Qual o papel das famílias nesse processo?  

Está completamente imbricado com o papel da escola. Não tem como separá-los. Ainda que muita gente pense o contrário, não existe mais a separação que conteúdos acadêmicos são da escola e valores morais da família, porque a escola não é mais o lugar da informação. A informação está na minha mão, no celular, e a escola é o lugar da organização dessa informação e ao mesmo tempo não dá mais para separar esse papel de formação humana da escola. A família precisa entender também que ela sozinha não vai dar conta de formar o seu filho e a escola vai ter que entender que sozinha também não dará conta de formar esse menino. Só que a família pode ter muito menos compreensão sobre formas eficazes de se resolver os conflitos do que a própria escola, que é um local institucional e profissional. Então, se na escola eu tenho profissionais que muitas vezes não sabem como lidar de maneira mais assertiva com os problemas, imagine a família que não é um profissional de ensino e não tem especialização em formas de se resolver problemas. A família vai cobrar e falar o que acredita que deve ocorrer a partir de seus valores e crenças. 

Também é necessário acolher essas famílias em seus sentimentos e quando uma mãe fala — minha filha está sofrendo bullying, minha filha está sofrendo preconceito — acolher essa mãe. Porque imagine a indignação dela; e também é importante que os profissionais da escola entendam que a mãe não sabe tudo o que a escola tem feito e que essa mãe também não sabe de outras formas de resolver problemas. Ou seja, separar o que é sentimento e depois separar o que é resposta da escola. É preciso dar uma resposta para essa mãe. 

Pesquisas brasileiras e mundiais mostram maneiras eficazes de se combater o bullying com a implementação de propostas em que os alunos sejam formados também para ajudar, são os sistemas de apoio entre pares, entre iguais. Há mais de 30 escolas no Brasil com esse trabalho que tem mostrado a eficácia que quando alunos veem os problemas e também intervêm, o quanto nessas escolas as situações de bullying, de racismo, de exclusão, podem ser minimizadas. Essas situações vão acontecer, mas a escola saberá como agir e como intervir para que isso não vire doença, para que isso não vire um ataque, para que isso não vire um problema maior como tem acontecido em todas essas escolas. Então o papel da escola é fazer essa acolhida. 

Sobre os estudantes: que práticas são necessárias para a melhoria das relações?   

Um programa de convivência precisa levar em consideração três dimensões: o institucional, o relacional e o curricular. Se já falamos da instituição e do currículo (não dá mais para ser o mesmo currículo), temos que falar das relações — o estudante precisa ter na escola espaços de pertencimento e participação. O que significa diagnosticar quais são os problemas que eles mesmos têm. É por isso que a gente tem dito que o programa de convivência não se parte sem um diagnóstico da realidade, inclusive, professores e gestores devem participar de discussões sobre dificuldades para a convivência, e assim saber de onde partir. Quando professores se assustam ao escutarem seus alunos dizerem sofrer todos os dias discriminações de gênero, raciais, discriminações de todas as ordens, eles falam — como assim? Nunca vi isso.  

O segundo ponto é que ao existir problemas de convivências, para se sentir pertencente é preciso ter intervenções que levem em consideração os sujeitos que estão envolvidos no problema, entendendo que eles é que precisam resolver a situação e não sobre ameaça, punição, mas sob a responsabilidade de reparar o erro e tomar consciência de qual é o problema. 

A terceira questão: espaços de participação, como assembleias e outras formas democráticas de organizar as regras na escola, devem indicar que se os problemas me pertencem, as soluções também precisam me pertencer. Quarto ponto é a participação em formas de protagonismo, como esses sistemas de apoio entre pares, por exemplo, as Equipes de Ajuda que temos feito desde 2015 no Brasil. São meninos e meninas que relatam o quanto eles podem ajudar os seus pares no reconhecimento das situações de sofrimento que os seus pares passam e eles podem intervir. E a última questão é o cuidado dos outros organismos da rede de proteção em que a escola está inserida. Falo ilustrando com o caso do garoto de Praia Grande, em que falhou a escola e falharam os outros serviços: Promotoria Pública, Conselho Tutelar e Saúde. 

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Autor

Laura Rachid


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