Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Construir a democracia é tarefa cotidiana da educação

Manifestantes se concentram para o ato em defesa da democracia na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, no centro de São Paulo - Kevin Davi/A7 Press/Estadão Conteúdo
Manifestantes se concentram para o ato em defesa da democracia na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, no centro de São Paulo Imagem: Kevin Davi/A7 Press/Estadão Conteúdo

Helena Singer*

17/08/2022 06h00

A semana foi de celebrações para a democracia. Graças à articulação de juristas com lideranças da sociedade civil, o dia 11 de agosto, em que se celebra a criação dos cursos de direito do país, foi marcado por atos em faculdades em todas as capitais, ocasiões em que se leu a "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!" assinada por um milhão de pessoas.

Se a defesa do Estado Democrático de Direito, ostensivamente ameaçado pelo ocupante da Presidência, é hoje tarefa assumida por juristas e operadores do direito, a efetiva construção da sociedade democrática depende, principalmente, do trabalho cotidiano de educadores em projetos que reconheçam e priorizem o papel da educação nesta construção.

Embora seja inegável a importância das eleições livres e diretas e o exercício do voto secreto, estes certamente não são suficientes para a garantia da democracia. Aliás, em vários momentos da história, como o que atualmente vivemos no Brasil, as eleições levam ao poder pessoas francamente contrárias à democracia, propagadores dos discursos de ódio e incentivadores da violência.

Exercer a democracia não é simplesmente votar, nem se resume a votar de modo consciente, elegendo representantes que fortaleçam as instituições do Estado Democrático de Direito. Exercer a democracia é reconhecer o coletivo, assumir a responsabilidade por ele e promover o bem comum. Por esta razão, trata-se, principalmente, de uma tarefa da educação.

Claro que isso não é novo. Muitos falam da importância da educação para a consolidação democrática. Mas, geralmente, associa-se a educação aos processos de escolarização e pouco se fala sobre quais aspectos da escola de fato levam as pessoas a valorizar, praticar e criar a democracia.

Mais recentemente, tem sido a extrema direita que tem trazido este tema para o centro dos debates, com o movimento escola sem partido, críticas sobre o que chamam de "ideologia de gênero", divulgação de notícias falsas sobre aliciamento sexual das crianças nas escolas e balburdia nas universidades. A estas investidas, os setores organizados da educação têm resistido e reagido, defendendo a escola e a universidade públicas, aludindo a direitos dos trabalhadores da educação, como a liberdade de cátedra, reivindicando a inclusão de conteúdos específicos nos currículos.

Embora tenham sua importância, estes elementos são insuficientes para a imensa tarefa de tornar as escolas ambientes em que crianças, adolescentes e jovens desenvolvam o apreço, as experiências e as capacidades necessárias para o exercício da democracia. Vale lembrar que a eleição do atual mandatário da república foi garantida pelos setores mais escolarizados da sociedade.

A democracia não se limita a uma escolha pragmática por certa forma de organizar a vida pública. A democracia é também valor e cultura. Os valores e as culturas são construídos nas práticas, nas experiências, nas relações.

As organizações educativas, dentre as quais a escola é a mais importante, precisam se organizar inteiramente sob a égide da democracia. Isso se dá quando os ambientes acolhem a todos, favorecendo o diálogo, o convívio e a cooperação. A gestão se orienta pela transparência e participação efetivas de estudantes, educadores, funcionários e famílias, responsabilizando-se coletivamente por todos e pelo bem comum. Os métodos estimulam a participação, a criatividade e a colaboração na transformação positiva da sociedade. As relações se constroem sobre a base da confiança, da solidariedade e da colaboração.

Que os atos 11 de agosto, quando diferentes gerações se uniram em torno de uma visão ampliada da democracia, reivindicando o respeito ao Estado democrático de direito, mas também assumindo sua responsabilidade na construção de uma democracia que a todos inclua, dêem lugar à construção de um projeto educacional que torne isso possível.

*Helena Singer é socióloga e líder da estratégia de juventude da Ashoka